Eu sei que eu tenho um jeito meio estúpido de ser

Eu sei que eu tenho um jeito meio estúpido de ser

Ignorância, brutalidade ou primitivismo é o que não faltam mesmo nas mais abastadas famílias, rodeadas de caviar e etiquetas. Todo mundo, não dá para negar, carrega pedras na alma. Raiva e lodo por detrás de sorrisos quase imaculados. Cegueiras de todo o tipo, que nos impedem de enxergar a fertilidade e o despertar delicado de certas relações ou de belos e abençoados momentos da natureza. Os olhares licorosos perdidos no pôr do sol, um modo especial  de acariciar seu bichinho de estimação.

Aliás, por falar em bichinhos, você já reparou na elegância meticulosa dos gatos, gordos ou magros, que saltam mirando o último nível da estante, e então deslizam  calma e perfeitamente equilibrados entre porcelanas francesas  caríssimas.

Bom exemplo.  Os gatos não são estúpidos. Nem quando brigam com outros, independentemente da  raça.  Eriçam-se, o rabo engrossa, ouve-se um miado mais rouco e afoito, mas ainda assim cheio de graça e felinidade.

A estupidez se espalha por todos os cantos deste planeta como mosquitos de verão, asfalto escaldante, litros de suor escorrendo de corpos, se aninhando dentro ou fora das praias.

Ser estúpido ultrapassa claramente o ato rude de dar uma cotovelada em alguém e não pedir desculpas. Pisar, sem se dar conta, no róseo pezinho da moça que aguarda no ônibus apinhado de passageiros sua vez de sentar.

O jeito de ser bronco incorpora múltiplas esferas. O perfume francês da perua que exala opulência. No entanto, a infeliz se sente desfalcada se der bom dia ao porteiro. A patroa que se dirige monossilabicamente à doméstica, porque afeto não combina com esta relação de consagrada subserviência.

O professor medroso que destila medo e autoritarismo fumegante em suas turmas, temendo, lá no fundo de sua consciência, a saudável e promissora parceria com os alunos.

Falam do mau humor dos franceses. Mas experimente dirigir-se a eles educadamente. Jamais você deixará de ouvir um “obrigada” ou ”por favor,” num colóquio rápido travado em um estabelecimento comercial.

Por outro lado, hordas de brasileiros mal educadíssimos, batem asas à Europa movidos sumamente por ganas compristas. Os olhos afogueados, vazios de cultura e banhados de cifrões.

Tais criaturas  chegam nas lojas e exigem do vendedor, num tom de voz extremamente desagradável. “Ei, me vê isso aí!”. Sem perda de tempo, vão pegando tudo  que está ao seu alcance, examinando os  objetos  sem pedir licença .

Expressões  vinculadas a agradecimento, passam longe do dicionário comportamental dessas pessoas.

Quanta estupidez. Usar o celular em transporte público e berrar durante a indigesta conversa que sinceramente não interessa a ninguém. Estupro auricular, não se faz por menos.

Cena de aniversário em família. Você avança nos doces bem antes do abre-alas oficial  ter sido anunciado pelo dono da casa. O marido da sua prima. Outro flagrante.  Ele ataca o bolo de morangos, servindo-se de um baita e indecoroso pedaço numa atitude declarada  de “os outros que se danem”.

Eu sei que eu tenho um jeito meio estúpido de ser. Todas as vezes que não devolvo o sorriso de um anônimo nas ruas.  Esqueço-me de cumprimentar, como habitualmente faço, o sorveteiro da esquina adiante. Não desejo bom final de semana ao dono da loja de brinquedos prestes a se despedir do trabalho, depois de uma sexta-feira esfalfante.

Vergonha alheia. Imagine.  Evento de final de ano na sua empresa. Os funcionários já chegam à festa munidos de sacolinhas e de intencionais bolsas avantajadas. Os convidados, atirando longe a conveniência e a sensatez,  se entopem  de salgadinhos para fazer outra boquinha mais tarde da noite, ao retornar, fedendo a gordura, para casa.

Egoísmo e mesquinhez pouca são bobagens. O famoso” Eu”, sempre se anuncia em primeiro lugar, aonde quer que se encontre. Nas filas para shows. Na espera de restaurantes, quem sabe alguns mais ousados conseguem dar uma de espertos  e tentam furar a fila, com qualquer desculpa  esfarrapada de última hora.

Fila de cinema. Lembro-me de um amigo muito engraçado que, quando se dirigia a uma concorrida estreia, saía gritando: “Olha o leproso, afasta, olha o leproso!” Assim, logicamente, abriam-se repentinas clareiras e o meu amigo, mal contendo o riso, tomava a ansiada dianteira na fila.

Estupidez também rima com a esperteza verde e amarela. Dar uma fechada nos carros direcionados ao túnel e ganhar vantagem, comendo espaço pelas beiradas, como reza a gíria. Tão comum, você não acha?

Entrar no elevador na frente da doce vovozinha que  paciente aguarda a  sua vez. Frequentar churrascarias e só porque está pagando um preço fixo, pedir tudo o que tem direito e mais ainda, em profusão, ao garçom atônito.

“Muita picanha, coração de galinha, cupim, banana, abóbora, aipim, Batata frita palito  e à portuguesa.  Ahah,  também manda ver dois  tipos de farofa com ovo e com bacon, além da maionese caprichada  e o jiló,  escutou? “ (Um adendo:  você odeia jiló com todas as suas forças. Porém,  para não perder a oportunidade, este legume passa a integrar a lista interminável de pedidos.)

Levar vantagem em tudo. Cacoete nosso, infelizmente.  Estupidez da grossa. Quanta dificuldade de sermos solidários, coletivos, generosos. Talvez nos sintamos muito pobres, mendigos mesmo por dentro, tamanha a profusão de demandas, provenientes da enorme carência que irrevogavelmente  nos habita.

Eu sei que tenho um jeito meio estúpido de ser. Todas as vezes que não decifro o amor silencioso que vem de você e de seus gestos discretos e leais. Quando não retribuo com o mesmo ardor o beijo assumidamente apaixonado que você me dá bem no meio daquela cena do filme de domingo.

Mas o legal nessas histórias acima narradas é quando você consegue perceber  tudo isso. Essas nuances atitudinais do cotidiano.  A desfaçatez, as grosserias, o rol de impropriedades manifestas sem nenhum pudor.

Porque somente assim, com a cara lavada diante do espelho, é que poderão se apresentar, diante de suas reflexões, delicadezas sutis, ternuras suaves e afetividades mais que deliciosas.

Este é o momento de vestir o coração de veludo e recobrir seus gestos de seda. Como diria o poeta Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. E vale mesmo.