Crônicas

Canção das coisas que dormem lá fora e acordam aqui dentro

Canção das coisas que dormem lá fora e acordam aqui dentro

Tem um galo cantando lá longe. Ele canta baixinho, tranquilo, seu canto de quem agradece a Deus pelo céu azul imenso de nuvens brancas varridas que vem aí, sob o sol alaranjado da alegria, esquentando o vento que varre das casas as angústias de ontem, que seca as roupas e renova a vida. Tem um galo cantando. Ele canta lindo, profundo, comovido, para a mulher que em algum lugar dança sozinha de olhos fechados, pés descalços, mãos abertas e coração transbordando música e lembranças.

Se falta luz ao fim do túnel, acenda uma lanterna

Se falta luz ao fim do túnel, acenda uma lanterna

Atravessar túneis longos e escuros, reais ou imaginários, acreditando haver luz ao término do percurso é no mínimo algo ingênuo. A não ser quando se trata de vencer enormes desafios íntimos. Pois a morte, em aparente desgoverno, dissimulada como o véu preto e soturno que a recobre, pode cruzar conosco. Assim é preciso estar atento e forte. Não acreditar em milagres a torto e a direito já é um passo e tanto. Porque muitas vezes eles precisam das nossas mãos do nosso cérebro e do nosso coração para se manifestarem.

Coisas que você vai pedir, mas Papai Noel não vai trazer

Coisas que você vai pedir, mas Papai Noel não vai trazer

Lamento empatar o seu amigo oculto, arranhar a lataria do espírito natalino que se apoderou da redoma planetária nos últimos dias, mas, existem certas coisas que você vai pedir ao Papai Noel e ele não vai trazer de jeito nenhum. Eu sei que já estou até ficando com fama de escritor maldito de tanto destilar as mazelas humanas nos meus textos, portanto, se você prefere sair para doar (se desfazer) a sua sacola de roupas velhas e puídas para os relegados de um asilo ou, ainda, se propõe a assistir da última fila, por questões de presbiopia e segurança, ao coral de facínoras desafinados da penitenciária local cantando o Jingle Bells, ao invés de ler esta crônica burlesco-natalina, fique à vontade.

Nós e nossa sublime alegria de não saber

Nós e nossa sublime alegria de não saber

A menina que hoje brinca com a comida e as próprias meias não sabe, mas ela sorri quando olha na claridade as partículas de poeira flutuando, brilhantes como estrelas caseiras, enquanto sua mãe passa uma vassoura na sala. Não sabe que a saudade corriqueira que tem do pai durante o dia é um sentimento que só vai aumentar com o tempo, o nariz e as orelhas de cada um. Ela não sabe que um dia vai ter saudade do que já foi, do que ainda é e até do que — quem sabe? — um dia poderá ser.

O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte

O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte

As pessoas não sabem que perderam suas asas desde que colocaram os pés nesta terra. Elas perseguem o definitivo, o concreto, o seguro e o assentado, logo que aterrissaram neste planeta. As únicas mudanças aceitas, durante sua trôpega, minguada e inexpressiva existência, residem no meticuloso planejamento financeiro do seu cotidiano mesquinho. Ninguém se dá conta, porém, de que quanto mais nos rendemos ao fascínio daquilo que consideramos como poder, mais nos afastamos da nossa tão sonhada e pouco tangenciada liberdade.