Assistido por 70 milhões de espectadores no primeiro mês da estreia, filme ficou no Top 10 da Netflix em 91 países Glen Wilson / Netflix

Assistido por 70 milhões de espectadores no primeiro mês da estreia, filme ficou no Top 10 da Netflix em 91 países

Refazer um filme pode, por vezes, ser um desafio maior do que desenvolver uma produção completamente nova, com roteiro original e elenco inédito. Em 2018, a versão de Gustav Möller para “O Culpado” conquistou aplausos pela maneira crua e direta com que retratou o lado humano da atuação policial. Três anos depois, Antoine Fuqua entrega uma nova interpretação do enredo, sustentando-se na mesma força que definiu o original: a capacidade de expor, sem rodeios, as fragilidades e tensões de um policial em situações extremas.

Fuqua, com um material já sólido em mãos, adota a máxima de “não se mexe em time que está ganhando”. As alterações feitas por Nic Pizzolatto no roteiro são pontuais, mas revelam a intenção de trazer à tona questões cruciais sobre o estresse inerente à profissão policial. Em vez de focar nos procedimentos operacionais que deveriam pautar a conduta em momentos de crise — protocolos que fazem parte do cotidiano de qualquer agente de segurança —, Fuqua e Pizzolatto optam por destacar o desequilíbrio emocional que surge quando um profissional se depara com um cenário que foge completamente ao esperado. Por mais treinado e controlado que alguém seja, não há como negar que o elemento humano, com toda sua vulnerabilidade, sempre acaba aparecendo.

Jake Gyllenhaal interpreta Joe Baylor, um detetive que vê sua carreira desmoronar, cumprindo plantão em uma noite caótica em Los Angeles. Pequenos detalhes, como o uso constante de um inalador para controlar sua asma persistente — um toque interessante que suaviza o enredo tenso —, rapidamente humanizam o personagem aos olhos do público. Baylor não é um herói inalcançável; ele é, acima de tudo, um homem comum, com suas fraquezas e limitações, à semelhança dos mais icônicos super-heróis fictícios. No entanto, suas dificuldades não o impedem de cumprir o dever.

Rebaixado ao papel de atendente de chamadas de emergência, ele tenta lidar com seus demônios pessoais enquanto ouve histórias absurdas de quem está do outro lado da linha. Esse envolvimento emocional excessivo acaba por complicar ainda mais sua já tumultuada vida. O personagem entrega uma dura reprimenda a um usuário de drogas que, claramente, não estava preparado para tal reação, enquanto engata uma discussão descontraída e irônica com uma vítima de assalto, em que a prostituta envolvida dá o tom cômico à situação. Baylor, uma espécie de Dirty Harry em queda livre, está pagando pelos erros cometidos, mas segue acumulando novos tropeços ao longo do caminho.

A tensão do filme se intensifica quando Joe recebe o telefonema de Emily, uma mulher em desespero, interpretada de forma magistral por Riley Keough, cuja presença nunca é vista, mas sua voz é suficiente para prender o público e o protagonista em um estado constante de apreensão. O grande acerto do roteiro de Pizzolatto é tornar Emily convincente apenas por meio da sua voz. Keough dá vida a uma personagem volátil, com mudanças bruscas de humor e uma personalidade imprevisível, atributos que definem a essência do longa.

Neste ponto, Baylor mantém a formalidade do atendimento, conduzindo Emily por um questionário básico, no qual ela deve responder apenas com “sim” ou “não”. Mesmo considerando essa abordagem frustrante, o detetive sabe que seguir o protocolo é sua única chance de reconquistar o prestígio perdido. Ainda assim, ele não consegue se distanciar da sua natureza investigativa, permanecendo ao lado de Emily além do que seria prudente, acreditando que ela enfrenta problemas mais profundos do que sequer imagina. Esse excesso de autoconfiança o leva a uma série de erros, agravando ainda mais sua situação já precária.

A rotina policial apresentada no filme emerge de forma melancólica, destacando o lado emocional dos profissionais que enfrentam o pior da sociedade — e muitas vezes são consumidos por ela, intencionalmente ou não. No entanto, “O Culpado” não se propõe a fazer um estudo antropológico sobre os excessos de autoridade; trata-se de um mergulho nas falhas humanas. Baylor, sempre punido por suas decisões equivocadas, acaba sendo submetido a mais uma sanção, o que suscita uma reflexão sobre a legitimidade de um policial confiar mais em seus instintos do que em um pensamento racional.

Fuqua, consciente ou não, faz uma homenagem à obra de Alfred Hitchcock ao centralizar “O Culpado” no conflito interno de seu protagonista. Gyllenhaal, por sua vez, mergulha profundamente na dualidade de seu personagem, construindo uma atuação que evoca os dilemas clássicos do cinema de suspense. As semelhanças com obras como “Janela Indiscreta” (1954), “Um Corpo que Cai” (1958) e “Disque M para Matar” (1954) são inegáveis, mas Fuqua consegue preservar a originalidade de sua narrativa. A fragmentação emocional de Baylor é a chave para sua interpretação; ele acredita que salvar Emily é o caminho para sua própria redenção, seja como policial, pai ou homem. Contudo, ao se deixar guiar por suas emoções na condução dos casos, Baylor se aproxima ainda mais de novos fracassos.

O filme avança para um desfecho inevitável, no qual fica evidente o descuido de Baylor consigo mesmo. Ele é um anti-herói em uma narrativa clássica do gênero, sem espaço para grandes transformações ou arrependimentos profundos. É precisamente essa aura de filme noir, conduzida por um personagem simultaneamente complexo e desmoronado, que conecta o público às contradições de sua própria humanidade, espelhando, no protagonista, tanto o melhor quanto o pior que todos carregamos.


Filme: O Culpado
Direção: 
Antoine Fuqua
Ano: 
2021
Gênero: 
Suspense
Nota: 
9/10