Desafio do dia: tente descolar seus olhos da tela enquanto assiste ao novo drama angustiante na Netflix Divulgação / CatchPlay

Desafio do dia: tente descolar seus olhos da tela enquanto assiste ao novo drama angustiante na Netflix

A partir de março de 2020, a humanidade passou a ter de encarar a consequência diabolicamente palpável de séculos de degradação ambiental, resultado de uma convivência promíscua e afrontosa entre seres humanos e o meio que os suporta. Este cenário de genuíno caos torna-se ainda mais severo à medida que avultam a inépcia e o descaso com que se conduziu o problema em determinadas partes do mundo, como brasileiros estamos cientes, o que por seu turno presta-se a um caldo onde a paranoia é o mal dentro do mal. “No Foco da Epidemia”, como diz o próprio título, não trata da Covid-19, mas retrocede vinte anos a fim de lembrar um episódio verídico passado num hospital de Taipei, a capital taiwanesa, às voltas com um inesperado surto de SARS, a síndrome respiratória aguda grave, em 2003. O diretor Lin Chun-yang, na verdade, ressuscita imagens não de duas décadas atrás, mas de agorinha, quando ninguém mais espantava-se com avenidas às moscas em pleno horário comercial, lojas fechadas, filas na entrada dos supermercados tanto para que se garantisse o menor fluxo de clientes dentro dos estabelecimentos como para a medição da temperatura, e claro, as indefectíveis máscaras, onipresente lembrança da proximidade da morte.

Um homem surge completamente envolvido numa grossa capa de plástico na abertura, respirando com alguma dificuldade enquanto caminha pelos corredores sem luz do hospital Heping. A princípio não se sabe se é médico ou paciente, e a medida que a história toma corpo, mais se percebe no roteiro de Liu Tsun-han esse propósito de remover qualquer traço de identidade daqueles que estavam nas dependências do Heping quando da ocorrência da infecção, rapidamente disseminada ainda que com o engajamento de todos, coesos e seguindo com algum método os procedimentos que, na teoria, poderiam debelar o fenômeno. O bloqueio isolou mais de mil pacientes, médicos, enfermeiros e técnicos, encerrados no hospital por cerca de duas semanas, decisão controversa, mas acertada, da prefeitura de Taipei. Assim mesmo, foi registrada uma média de trinta mortes no período, inclusive entre os quadros do Heping, o que degringolou em problemas de outra ordem. Como providência nenhuma implicava o arrefecimento da praga, uma parte do corpo clínico passou a negar atendimento aos doentes; e quando se dá o isolamento do isolamento, e ninguém mais arrisca um palpite acerca de sua própria sobrevida, numa conjuntura ainda mais perversa que acaba com o suicídio de um homem.

Temperaturas normais e atividade respiratória sem grandes sobressaltos deixam de ser garantia de saúde, e o desespero começa a, verdadeiramente, ser uma companhia indesejada, mas contra a qual não adianta se rebelar. O doutor Hsia sintetiza o pânico e a amargura serena de não ter mais o domínio de suas vontades. A caminho do aniversário da filha quando é decretada a interdição do Heping, Hsia deixa vir à superfície boa parte do  arrependimento por ter valorizado tanto a carreira, num prejuízo da convivência com a família que cobra-lhe um preço alto demais. Edison Wang dá a “No Foco da Epidemia” a alma que o filme precisa, mormente na última cena, quando desce-lhe um pranto sincero, de dor, mas também de alívio.


Filme: No Foco da Epidemia
Direção: Lin Chun-yang
Ano: 2023
Gênero: Drama/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.