Filme surpreendente na Netflix mostra jornada de ascensão e queda de um dos maiores ícones do século na música nacional Divulgação / Globo Filmes

Filme surpreendente na Netflix mostra jornada de ascensão e queda de um dos maiores ícones do século na música nacional

Nenhum artista encarnou com tamanha justeza o vínculo entre paranoia, o Estado de exceção vigente no Brasil ao longo da ditadura militar (1964-1985) e a MPB do que Wilson Simonal de Castro (1938-2000) — e essa ligação voltou-se contra ele e serviu como a fonte perene de calúnias que acabou por reduzi-lo a uma pálida lembrança do homem exuberante e do cantor potente e carismático que fora, quiçá o mais sedutor do cenário musical brasileiro de todos os tempos. “Simonal”, a frágil cinebiografia dirigida por Leonardo Domingues navega por teorias conspiratórias que obnubilam ainda mais o já turvo universo do intérprete de “Mamãe Passou Açúcar Em Mim” (1966), “Nem Vem Que Não Tem” (1967) e “Sá Marina” (1968), além de, pelo menos, outras três dezenas de sucessos do que chamou, bem a seu modo, de pilantragem, mistura de rock, jazz e soul muito bem temperados com a inconfundível cadência do samba de breque, também reinventado por Simonal, que sabia encher a letra das canções dos cacos que acendiam a plateia sem deixar cair, como quando regeu um coro de trinta mil vozes no ginásio do Maracanãzinho, em 1967. As imagens do artista, morto em 25 de junho de 2000, de falência múltipla dos órgãos por uma doença hepática crônica, não chegam a redimir a superficialidade do longa, mas devolvem ao espectador o gosto por acompanhar a subida vertiginosa de Simonal, malgrado conheçamos o turbilhão de desdita que o colhe não muito tempo depois, em parte por sua própria culpa. Em parte.

Um plano geral da baía de Guanabara numa noite de 1975 cede lugar a fragmentos em película de transeuntes cruzando o túnel Engenheiro Coelho Cintrafaz, o Túnel Novo. A ação continua com três mulheres num conversível, cercadas por uma multidão de figurantes. Uma delas salta do carro: é Laura Figueiredo, produtora musical e empresária, que beija e é beijada por quase todos eles, até chegar à entrada do inferninho em Copacabana onde Laura e o marido, Abelardo, preparam uma surpresa para a plateia, inicialmente receptiva e um tanto frenética. Quando Simonal dá alguns passos decididos, chega ao microfone e solta a voz, o ambiente é tomado por apupos fragorosos, o que não é exatamente difícil de entender. O roteiro, de Domingues e Victor Atherino, mostra habilidade ao retroceder década e meia e levar a história para uma festa na piscina que celebra a formatura de rapazes e moças da fina flor carioca, muito loura e muito alva para nossos trópicos, onde se apresenta um tal Dry Boys, os “garotos enxutos”. O velho Simona ainda haveria de amargar perrengues épicos até conseguir ser percebido pela nata da indústria fonográfica de então, mas já dava mostras de que não era de passar recibo para o quer que pensassem dele, flertando com uma garota branca (e sendo correspondido) e jogando-se na água (sem os parceiros de conjunto). Essa alegria de viver de Simonal — nada mais que um maldisfarçado instinto de sobrevivência —, aliada ao talento sem par, decerto o ajudou a ser fisgado pelo anzol matador de Carlos Imperial (1935-1992), um dos reis da noite carioca, além de também ser conhecido pela cafajestagem e por uma inclinação quase biológica para a puxada de tapete — da qual foi vítima não muito tempo depois. Um Imperial estranhamente magro na pele de Leandro Hassum pós-gastroplastia, sempre com suas metáforas escatológicas, vê no vocalista do Dry Boys, “fera com ph” (ele diz uma outra palavra igualmente começada por efe, claro), a mesma verve de Harry Belafonte (1927-2023), e está disposto a agenciá-lo, contanto que ele se desligue da banda. Foi Imperial quem primeiro conseguira incutir nas massas o falso espírito de realeza de Roberto Carlos, se preparando para lançar Erasmo (1941-2022), outra bijuteria vendida como joia rara. Seu genuíno ouro era negro, e estava prestes a dar a maior guinada de sua vida.

No terceiro segmento, o filme ao que de fato importa. O diretor esclarece que Simonal não era nenhum caçador de comunistas, como pintaram-no nove entre os dez veículos de imprensa que o adularam até a náusea, entre os quais a finada revista “Manchete” e o “Jornal da Cidade”. Simonal pouco se lixava para política, mas era louco por dinheiro. A suspeita de estar sendo roubado por Raphael Viviani, chamado de Paulo Taviani para driblar fatais ações cíveis, motivou o cantor a procurar o delegado Santana, com quem já estivera a fim de prestar depoimento sobre a apresentação em que galvaniza o clamor por efetiva democracia racial numa apresentação em que entoa os versos perturbadores de “Tributo a Martin Luther King” (1967). Caco Ciocler e o protagonista, Fabrício Boliveira, estabelecem a grande parceria de “Simonal”, fazendo com que o eixo da narrativa mude-se de vez para o thriller saboroso que vai mais e mais fundo na conduta do personagem-título diante da cilada que engendra para si mesmo,  com a ajuda talvez consciente de Santana. Numa cena de pura sofisticação, ao termo da conversa nas dependências do DOPS, a temida polícia política da ditadura, Simonal se encaminha para a saída, quando o delegado o alcança. Conversam amenidades, Santana se declara fã daquele que, na verdade, encara como sua grande chance de ascender no submundo do regime, e lhe dirige um cartão de visitas, que cai no chão. Simonal reclina-se para apanhá-lo e depois disso nunca mais consegue manter a coluna reta. Santana entra no malfadado episódio com Taviani, a pedido de Simonal, e, por óbvio, isso não poderia acabar numa tela azul com bolinhas brancas.

Boliveira se sai bem no papel central, ainda que não se livre do sotaque baiano, mormente em lances de grande tensão, o que não sói acontecer com o também soteropolitano Lázaro Ramos, gaúcho em “O Homem que Copiava” (2003), de Jorge Furtado. Laura, de Mariana Lima, volta no epílogo como a personificação da amizade incondicional pelo astro, agora decadente, colocando o relato de novo na boate de onde o filme se atira a uma jornada pela trajetória do ídolo, caótica, e, no entanto, muito mais honesta que “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei” (2009), o documentário de Micael Langer, Calvito Leal e Cláudio Manoel, melancolicamente hagiográfico.


Filme: Simonal
Direção: Leonardo Domingues
Ano: 2018
Gênero: Biografia/Drama/Musical
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.