“Águas que Corroem” deu um bem-vindo tranco nos canalhas de plantão ao falar de empoderamento das mulheres, violência sexual, provincianismo e tráfico de drogas de uma maneira nada vulgar. Refutando os tantos lugares-comuns do gênero, Jennifer McGowan passa longe de matadores em série à espreita da próxima vítima, litros de sangue que esguicham de jugulares copiosamente, vísceras arrancadas depois de rituais satânicos. Não que ela não seja capaz. O que parece contar para a diretora quanto a escolher uma saída ou outra é a importância do uso desses recursos em detrimento da narrativa em si mesma, que McGowan sabe que pode explorar de maneira mais inteligente.
Ser mulher num mundo pensado e construído para homens não deve ser fácil. Admita-se ou não, pulsa em alguma parte recôndita da mente de cada um de nós, mesmo em se tratando do mais liberal dos mortais — e a despeito do gênero, em muitos casos —, o pensamento, contra o qual quase todos lutamos, de estigmatizar uma mulher de acordo com o comprimento da saia que veste, a cor do batom com que pinta os lábios, estar ou não acompanhada em determinados lugares, especialmente depois de certas horas. Até aí, contorna-se o drama de parte a parte, observando-se a natureza eivada pelo patriarcalismo que leva-nos às atitudes hediondamente misóginas em sociedades do mundo todo, mormente no Brasil, e com boa vontade, educação, marketing engajado, e, por óbvio, leis, se consegue empreender um combate exitoso ao monstro do preconceito mais atrasado que habita nosso inconsciente. Uma das questões é saber até que ponto essa fera é capaz de se manter silenciada e sob controle, guardando apenas para si suas opiniões e comentários delinquentes. A outra é adivinhar onde estariam as pessoas que não veem nenhum problema em preservar seus piores instintos vivos e ferozes.
McGowan não precisa de muito para fazer de “Águas que Corroem” um de seus melhores trabalhos. A história se passa à luz do dia, numa cidadezinha rural do Kentucky, gradualmente dominada pela presença do comércio de opioides. É por onde Sawyer, universitária que persegue uma boa oportunidade de colocação profissional, tem de dirigir para chegar a Washington. Um erro do GPS — sempre desconfie dele; deixe seu orgulho de lado e peça informações à moda antiga — faz com que se embrenhe no coração de uma floresta, cenário ainda mais hostil devido ao rigor do inverno, que deixa a copa das árvores nuas e o chão tomado de folhas secas, excelente intervenção de Michelle Lawler com sua fotografia em sépia. A mocinha, de uma Hermione Corfield admiravelmente à vontade num personagem de incorporação tão complexa, deixa o bosque, mas fica ilhada, à mercê de Hollister e Buck, os tipos marginais que caem do azul e começam a molestá-la, tudo se encaminhando para um tenebroso estupro. O que os bandidos interpretados por Micah Hauptman e Daniel R. Hill não supunham é que a garota não é tão indefesa quanto sua aparência frágil deixa à mostra. A partir de então, a diretora vale-se do terror psicológico para elucubrar sobre o destino de Sawyer, que luta contra a investida dos agressores até que a mata agreste se impõe mais uma vez, agora a seu favor.
O verdadeiramente saboroso em “Águas que Corroem” é a habilidade de McGowan em ir adicionando camadas de tensão à história central, com subtramas que, conservando-se a primazia do suspense, poderiam nunca ser desenvolvidas, mas que uma vez encampadas, ao contrário de enfraquecer o argumento original, só fazem com que ele tenha ainda mais importância, quiçá até justificando o conflito que dá mote ao roteiro de Julie Lipson. Desde a primeira reviravolta, resta inequívoco que a personagem de Corfield é quem vai dar as cartas nesse jogo, confirmando a tendência da diretora quanto a conceber perspectivas assumidamente feministas num enredo que teria tudo para agradar muito mais aos marmanjos. A casa vai ruindo para Hollister e Buck aos poucos, mas sem cessar, num movimento seguro do filme rumo ao que quer dizer nas entrelinhas. Os candidatos a vilões não chegam aos pés da expedita Sawyer, que na agonia de se safar do encalço dos dois, encara como previsível a hospitalidade de Lowell, o fabricante de metanfetamina interpretado por Jay Paulson, com quem passa a bater uma bola redonda até o desfecho explosivo. Primo dos dois importunadores da abertura, Lowell protege a estranha da verdadeira obsessão que nutrem pela garota, que por sua vez desenvolve uma síndrome de Estocolmo muito veraz e aceitável, já que acha-se tão combalida. É quando também entra no circuito o xerife O’Doyle, de Sean O’Bryan, o grande antagonista da história, fechando o arco de refinada psicopatia a unir os cinco.
Dá gosto assistir a uma história que parece panfletária, mas que nunca resvala na militância que, lamentavelmente, sobrepuja-se à arte, usando o público e o fazendo de bobo. Cheio das tais águas corrosivas a que alude o título em português, explicadas numa fase da atividade infralegal de Lowell, o filme é, sem abrir mão da trama mesma e seus desvios, outro alerta às mulheres, incentivando-as a tomar sua cruz e lutar, feito o riacho de um lugar aonde se vai ao acaso. E por mais inofensivo que pareça, nem sempre se conhece o que haverá por baixo de seu leito.
Filme: Águas que Corroem
Direção: Jennifer McGowan
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Suspense/Policial
Nota: 10/10