“Cruzando a Linha” termina com um número: todos os anos, 250 mil crianças entram no sistema de adoção nos Estados Unidos. Essa informação, claro, precisa ser contextualizada, e é aí que o filme do italiano Michele Civetta passa a fazer sentido. Civetta parte de uma estatística solta num universo de mil outras realidades igualmente lamentáveis para, com muito tato, incluir a necessidade de um anti-herói que, sem figura de linguagem, dê a vida por essas pessoas e tome as devidas providências, fazendo, inclusive, o trabalho sujo. Parece que o assistente social Parker Jode, de Shea Whigham, cuida de tudo e de todos, menos de si mesmo, e, de uma vez por todas, o texto de Civetta, Alex Felix Bendaña e Andrew Levitas escolhe orbitar pelo universo caótico de Jode, o maior abandonado que não inspira a comiseração de ninguém, vive jogado às traças, pulando de um vício a outro, escorando-se numa virtude meio artificiosa a fim de esquecer as misérias de uma vida de desacertos, de descaminhos, que o trio de roteiristas esmiúça no transcurso de hora e meia de projeção. A pena que poder-se-ia sentir desse homem essencialmente aflito é aos poucos substituída pela raiva que nos inspira sua vocação para a tristeza, alimentada pela noção de dignidade que caiba em sua tibieza moral.
Jode dirige por um bairro pobre de St. Louis, Missouri, Centro-Oeste americano, já bastante familiarizado com o que contempla a bordo de seu Mustang grená. Logo resta claro que essa identificação relaciona-se objetivamente à dependência química, embora o diretor nunca o vá mostrar enfiando-se em becos escuros, misturando-se com toda sorte de gente para garantir um papelote de cocaína ou um cristal de alguma droga sintética — isso ele faz no bar de Gary Wolfbock, o tipo ensebado de Mark Boone Junior, na presença dos outros clientes e à luz do dia, quando começa a esvaziar as garrafas. O antimocinho de Whigham, numa missão inglória para conferir alguma substância dramática a seu protagonista, está numa diligência um tanto fora do regulamento, certificando-se de que o menino cujo acompanhamento lhe cabe está em segurança — não, ele não está, e Civetta fecha esse arco um pouco atabalhoadamente, registrando, ao menos, a tensão extrema a que Jode se sujeita para ganhar a vida. A sequência inicial já ambienta o público quanto ao que vai acontecer pouco depois, quando invade uma casa pela mesma razão, desta vez com um desfecho mais suave. Ashley, outra de seus pupilos, depende dele para ir à escola, uma vez que a mãe, Dahlia, trabalha de madrugada e com frequência aproveita o embalo para cair e farra e meter-se com cafajestes como o marido, Mike, cumprindo pena por tráfico. O núcleo composto por Taegen Burns, Olivia Munn e Zach Avery, nessa ordem, vai-se esfacelando e se decompõe consideravelmente no momento em que o filme ultrapassa a fronteira do drama de família e assume sua porção denunciadora, apontando para conchavos nada republicanos entre King, a detetive interpretada por Shannon Adawn, e Duke Harmaday, o chefão do submundo de Frank Grillo numa participação pouco mais que burocrática. Civetta retoma a natureza eminentemente dramática com a reviravolta que obriga Jode a recorrer ao pai, Marcus, de quem está afastado há anos e que continua a renegá-lo. O tocante desempenho de Bruce Dern eleva o enredo a um nível surpreendente pelo que se viu até ali, com Dern tinindo na pele de um velho solitário, mas que ainda nutre a esperança inútil de reconciliar-se com o filho, desperdiçada para sempre por causa de um mal-entendido patrocinado por Mike, então em liberdade condicional, mas recapturado num deslize amador.
O final, com soluções quase farsescas no intuito de penalizar Jode e Mike por motivos diametralmente contrários, leva a audiência a doer-se de tudo quanto “Cruzando a Linha” poderia ter sido, e não foi. Civetta, que fez carreira à frente de comerciais de televisão e videoclipes, tem ainda um longo caminho a percorrer e, destarte, notar no que o cinema discrepa dessas essas linguagens audiovisuais. Boa sorte para ele.
Filme: Cruzando a Linha
Direção: Michele Civetta
Ano: 2021
Gêneros: Crime/Thriller/Drama
Nota: 7/10