O submundo do crime exige uma medida maior de audácia, muito mais do que nas atividades protegidas por leis e estatutos. Ou seja, se destacar é difícil, e se manter vivo — metafórica e literalmente — é apenas para aqueles com sangue de predador correndo nas veias. Mais do que em qualquer outro campo, aquele que aspira ao sucesso em atividades ilegais precisa trazer à tona um lado obscuro, reprimido na personalidade de quem trabalha honestamente. Obviamente, na vida — e nos negócios — nem sempre tudo é tão cartesiano, e há pessoas que simplesmente não conseguem ser tão civilizadas ao administrar sua própria carreira ou a de seus subordinados. Contrariando todas as previsões e o que é estabelecido, um traficante cauteloso, paciente e com ambições modestas escala uma montanha de riscos titânicos, contorna os rivais, os reais e os imaginados, e chega ao topo (ou o lugar que escolheu como topo) relativamente limpo, esperando poder desfrutar do descanso que acredita merecer, até que, talvez como um ultimato, recebe a missão que pode fazer o planejamento de toda uma vida escorrer por entre os dedos.
Matthew Vaughn constrói os conflitos que este membro padrão da máfia terá que enfrentar até conseguir se livrar da vida de crimes e de suas armadilhas, espreitando na primeira curva, e seguir em frente, por um caminho que talvez seja o oposto do que trilhara até então, ou apenas uma variação do que se tornara. “Nem Tudo é o que Parece” (2004) depende resolutamente da atuação de Daniel Craig para alcançar o nível de tensão almejado, e nisso, o filme se sai muito bem. Como mais um dos tipos obscuros, excluídos, insignificantes da engrenagem do crime retratados pelo cinema, da mesma forma que em produções como “Drive” (2011), dirigido por Nicolas Winding Refn, ou “Wheelman” (2017), levado à tela por Jeremy Rush, o personagem de Craig não tem nome — nos créditos finais, ganha a representação de XXXX, o que poderia significar que teria conseguido passar incólume pela bateria de inveja, descaso e violência do crime organizado de Londres, uma chaga da pós-modernidade como em qualquer metrópole do mundo, mas com um pouco mais de classe. Aqui, criminosos usam ternos bem cortados, até os mais pedestres na hierarquia infinita do tráfico, e, claro, com o protagonista, vivido justamente por um dos galãs de ascensão mais rápida da história da indústria cinematográfica, não seria diferente. Craig, pouco antes de brilhar como James Bond nos filmes da franquia “007”, papel que interpretou entre 2006 e 2021, dá uma breve amostra do que viria a ser sua performance como o espião mais famoso do planeta. No que diz respeito a XXXX, narrador da história, deduz-se do roteiro de J.J. Connolly — uma extensão de “Layer Cake” (2000), seu romance policial sem versão em português — que seu ingresso nesse meio ocorreu não sem certa resistência, como uma última tentativa de obter alguma independência, e que sua saída é uma decisão exclusivamente sua. Connolly faz questão de deixar claro que essa visão romântica do que é o expediente de uma quadrilha é apropriada para Bond, não para um XXXX qualquer. O personagem de Craig, muito mais um anti-herói do que propriamente um vilão, sente que o passado decidiu cobrar a conta por suas escolhas, conscientes ou não. Jimmy Price, o chefe vivido por Kenneth Cranham, o encarrega de resgatar a filha de seu superior, Eddie Temple, o chefão de todo o esquema interpretado por Michael Gambon.
No meio do enredo, Vaughn inclui duas subtramas que comprometem o andamento de seu filme em certa medida, mas servem como um bom recurso para o que se vê no desfecho. Uma das ramificações mais lucrativas da gangue de Temple envolve o ecstasy, não por acaso também as mais arriscadas. Duke, interpretado por Jamie Forman, um dos homens de Jimmy, roubou da máfia sérvia um milhão de libras em pílulas da droga, e está prestes a deflagrar uma verdadeira chacina, que, mais uma vez, só poderia ser remediada por XXXX, diplomático o bastante para recuperar a mercadoria sem encerrar o canal com os traficantes do Leste Europeu. Ele quase consegue, mas apaixonado, quiçá pela primeira vez, só tem olhos para Tammy, interpretada por Sienna Miller, o elemento romântico-sexual indispensável em narrativas desse gênero.
Vaughn trabalha com eficácia o conceito do homem eminentemente perdido que encontra no amor a chance de se redimir, mas que é também sabotado pelo destino, como sugere a última cena, o grande ponto de virada da história, quando um jovem aspirante a gângster — como ele mesmo o fora um dia — sela seu destino. Uma vez no crime, não se sai mais dele, eis a mensagem de “Nem Tudo é o que Parece”, que se assemelha a um thriller sem coração, mas à la Scorsese, é a história de um amor que se esqueceu de acontecer.
Filme: Nem Tudo é o que Parece
Direção: Matthew Vaughn
Ano: 2004
Gêneros: Policial/Drama/Ação
Nota: 9/10