História belíssima, cativante e imperdível, na Netflix, tem 100% de avaliações positivas Divulgação / KMBO

História belíssima, cativante e imperdível, na Netflix, tem 100% de avaliações positivas

Natalia Beristáin fala dos obstáculos que interditam-nos a felicidade como poucos. Aprofundando-se na conturbada relação entre uma poetisa e um filósofo, a diretora consegue com “O Eterno Feminino” a um só tempo desmistificar certas imagens sobre o amor de pessoas que passam longe do estereótipo da gente comum iluminando também pontos obscuros que só eles mesmos enxergam, levando o espectador a participar da vida do casal e de suas descobertas. Beristáin, nova mestra do drama mexicano, narra os momentos felizes que uniram Rosario Castellanos (1925-1974) e Ricardo Guerra Tejada (1927-2007), mas não se deixa seduzir pela mágica que sem dúvida há no caso dos dois, espécie de maldição a fazê-los unidos num propósito insano e cada vez mais distante.

Na sequência de abertura, a cena de amor, no quarto submerso na luz de um branco cintilante a se derramar sobre os personagens de Karina Gidi e Daniel Giménez Cacho, dá a tônica do que a diretora pretende com seu filme. Ainda que a imagem também esteja cercada por uma névoa leitosa — recurso de que Beristáin se vale com algum exagero —, percebe-se que a harmonia que os amalgama tem qualquer coisa de falso, o que o roteiro de Javier Peñalosa e María Reneé Prudencio intensifica aos poucos. Essa sensação torna-se parte da história à medida que o filme vai e volta no tempo, pulando de flashbacks que documentam um passado recente para a vida dos personagens centrais como estão naquele momento. Castellanos parece feliz, quiçá antevendo conquistas iminentes, ao dizer versos de um de seus poemas ao auditório cheio de estudantes, e o eu-lírico do texto, claro, reflete a percepção bastante lúcida que tem de si própria, mas a poetisa vai além. Beristáin faz com que sobressaia a relação de

Castellanos com a mãe, Adriana, e de algum modo vincula essa lembrança ao namoro então incipiente com Tejada, com quem caminha por um bosque numa manhã cinzenta. Ninguém duvida que estão apaixonados — ela pelo novo companheiro, ao menos —, e planos abertos de Gidi sentada na escadaria da Universidade Nacional Autônoma do México, lendo e rascunhando as ridículas cartas de amor que despacharia ao futuro marido por entre um batalhão de pernas em frenesi, confirmam que aquele é, com efeito, um namoro sui generis. Castellanos e Tejada se casam, nasce Gabriel, mas o que se destaca em meio à vida doméstica quase ordinária são os encontros irregulares dos dois, como se habitassem universos paralelos. Esse é o gancho para que a diretora avance e componha um retrospecto da atuação intelectual da poetisa como uma das mais potentes vozes da militância feminista no México, discursando em retórica impecável sobre a necessidade de uma figura varonil, pai, cônjuge, irmãos, quanto a legitimar a identidade da mulher, uma batalha de todos os dias, para ela.

Ainda faz sentido que mulheres reivindiquem ações afirmativas, do Estado ou de quem quer que seja, num mundo em que elas estão cada vez mais poderosas — por seu próprio mérito, que se frise —? Seria bom desfrutar da análise sempre friamente mordaz de Rosario Castellanos, que, lamentavelmente, morreu eletrocutada num acidente doméstico quando servia como embaixadora do México em Tel Aviv. Seu desaparecimento precoce, aos 49 anos, em 7 de agosto de 1974, calou um dos pensamentos mais honestos sobre uma questão que dominava como poucas, depois de ter sentido na carne o desprezo e as tentativas de subjugação de Ricardo Guerra Tejada e do mundo de que ele, querendo ou não, fazia parte.


Filme: O Eterno Feminino
Direção: Natalia Beristáin
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.