Ganhador de quatro Oscars, um dos filmes mais belos da história do cinema está no Prime Video Divulgação / United Artists

Ganhador de quatro Oscars, um dos filmes mais belos da história do cinema está no Prime Video

Em que medida a doença mental, mesmo que desde sempre arraigada a um espírito doce, incapacita um homem adulto a tomar as rédeas de sua própria vida? Até que ponto o completo alheamento do mundo interfere no poder que um indivíduo tem de distinguir o bem do mal, identificar seus aliados, cultivar-lhes afetos, saber que não precisa mais conservar-se tão isolado, tão só, tão infeliz? Alguém pode resolver, de uma hora para a outra, que ama um parente a despeito de mágoas que perduram por um tempo sobre o qual ninguém exerce domínio? Essas são algumas das questões que Barry Levinson tenta responder em “Rain Man”, sem deixar de fazer suas consultas ao próprio espectador. Ainda que Levinson, dono de uma produção regular, embora pouco lembrada, não tivesse feito nada mais ao longo das quatro décadas de carreira, estaria perdoado por conseguir dar a sofisticação e a delicadeza que o roteiro de Barry Morrow e Ron Bass exige ao passo que mantém a leveza da história até a derradeira cena, o que, definitivamente, se torna a marca registrada do filme. Ele ainda encontra inspiração para malabarismos técnicos.

Na introdução, além da neblina plúmbea que toma o céu de Los Angeles, é possível ver uma Lamborghini vermelha planando sobre as cabeças dos transeuntes apressados, imagem que por si só mesmeriza e garante até o fim a atenção do público, graças à mágica da edição de Stu Linder (1931-2006) e da fotografia de John Seale. Vender carros de luxo a preços abaixo da tabela é a última cartada de Charlie Babbitt para alavancar seus negócios, e sabe-se de imediato que se tem cara de porco, focinho de porco, grunhe e chafurda na lama, só pode ser porco. Tom Cruise, para não variar, monopoliza os olhares, e na pele de Charlie, um personagem que poderia facilmente resvalar na caricatura, seu talento fala mais alto outra vez. Ele parece guardar resquícios de um esmero bastante pronunciado, que saca na hora certa, tanto para conduzir seus negócios meio suspeitos quanto na tentativa de contornar atritos com Susanna, a noiva-secretária da excelente Valeria Golino. Resta subentendido que alguma razão muito forte o levou a enveredar por esses negócios, nos quais conta com o socorro providencial de Lenny, sua contraface de mansidão e uma bondade recatada fundidas por Ralph Seymour, que está no limite, mas não quer jogar a toalha. Ao fim da apresentação dessas figuras malditas, cada qual a seu modo, no segundo ato o diretor começa a girar o leme para outra direção, juntando esse novo segmento ao que acabara de dispor sobre a mesa.

A reviravolta que dá azo ao enredo presta-se a embaralhar ainda mais a vida já caótica do protagonista, que passa a dividir seu espaço, mas não perde rigorosamente nada. O irmão 25 anos mais velho, com quem não tem contato, torna sua vida uma circunstância desabridamente melancólica, e é no mínimo temerário levantar qualquer suposição aqui. Raymond, na pele de um Dustin Hoffman em forma invejável, já maduro e contagiando os colegas mais novos, faz jus ao Oscar de Melhor Ator — nesse departamento, “Rain Man” tratorou a concorrência ao também garantir os prêmios de Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original — ao conferir um viés até então novo à realidade do autismo em grau severo. Portador da síndrome de Savant, Raymond é capaz de decorar uma lista telefônica em poucos dias, efetua cálculos com mais de sete dígitos de cabeça, aprendeu a dirigir o Buick 1949 do pai em uma única aula, mas a muito custo se habitua a mudanças extremas na rotina e se enfurece com ruídos agudos, como o de um sensor de incêndio. Além de ficar particularmente arisco durante tempestades.

Levinson distribui em pílulas ao longo do rico texto de Morrow e Bass as explicações acerca dos traumas dos irmãos, e até surge ele mesmo, como o psiquiatra que supervisiona o tratamento de Raymond no asilo em que mora desde que pensou estar irremediavelmente só no mundo — sentimento que também abreviou umas tantas noites de sono de Charlie, por mais que ele negue. A exemplo do que se dá nos contos de fadas ou nas páginas de Tolstói, tudo de que precisavam era um do outro, e, pelo que se depreende do epílogo, terão a chance que precisavam para seguir juntos pela mesma estrada.


Filme: Rain Man
Direção: Barry Levinson
Ano: 1988
Gêneros: Drama/Road movie
Nota: 9/10