Levamos um bom tempo tentando descobrir se tomamos a atitude certa numa dada ocasião, se conduzimos do jeito mais adequado um problema qualquer, se não poderíamos ter tirado vantagem de uma conjuntura que, quiçá, nunca mais se repita. Uma generosa medida de desespero é a matéria-prima de que Onur Saylak se utiliza em “Encurralados”, um desespero particular, daquela ordem que só a severa falta de dinheiro é capaz de trazer das profundezas mais imundas do calejado espírito do homem. Quanto mais o enredo avança, mais ratifica-se a ideia de que as grandes espertezas para se transformar um punhado de moedas numa montanha de ouro implicam preocupações de natureza mais funesta que as da penúria mais inclemente, e muitas vezes a miséria chega mesmo porque convidada pela ganância, inimiga figadal do bom senso.
O ruído selvagem dos insetos contrasta com o som do rádio de um carro que atravessa a noite. Ao volante, Yalin Sayin viaja com a mulher, Beyza, para Asos, sua cidade natal, onde decidem morar. “Decisão”, na verdade, não é a palavra mais recomendada, como o roteiro de Hakan Günday vai elucidando aos poucos, até que um episódio de tola animosidade entre Yalin, o protagonista interpretado por Kivanç Tatlitug, e Cevdet, vivido por Kerem Arslanoglu, escancara de vez o que acontece na vida desse homem visivelmente transtornado, que volta às origens não por uma qualquer razão afetiva, mas fugindo dos olhares de aversão e revolta das pessoas que enganou ao oferecer um esquema de pirâmide financeira, quando um “investidor” fatura com os ganhos de outro, que faz o mesmo, arrebanhando uma legião de encalacrados. A maneira como Cevdet afronta o personagem de Tatlitug, dá uma pista ainda instável do temperamento do novo morador de Asos, que como o funcionário do antiquário de Niyazi faz questão de frisar, abrigou Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) em seu périplo pelo mundo antigo depois que sua atuação como mestre de Alexandre, o Grande (356 a.C – 323 a.C), passara a ser alvo de reproches e espinafrações públicas. Essa saborosa ironia do texto de Günday cai como uma luva para explicar a aura de cinismo e hipocrisia na sociedade local; não pode haver ninguém mais diferente do filósofo que Yalin — malgrado os dois partilhem desse curioso detalhe em sua história de nômades e de trânsfugas —, e, o episódio do antiquário (que não passa de um brechó de quinquilharias, repassadas aos viajantes sob a forma de genuínas relíquias, expediente praticado no mundo todo desde sempre), também tem o condão de mostrar que se o forasteiro mantinha na lembrança uma imagem romântica do povo de Asos, como uma gente pacata, ingênua, suas fantasias morrem ali.
Não demora e o primeiro-sargento Selami Toker, de Gürgen Oz, põe-se em seu encalço, averiguando o que pode ter ocorrido naquele depósito de falsos tesouros, e justamente por meio dele que se dá o grande acerto de contas — sem figura de linguagem — entre os dois. Antes disso, Saylak consegue levar um jogo de gato e rato sem muitas acrobacias retóricas ou efeitos plásticos, reservando a Beyza, um trabalho magnífico de Funda Eryigit, o papel de mártir e única digna de pena em tudo aquilo.
Filme: Encurralados
Direção: Onur Saylak
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10