Graciliano Ramos é o meu candidato em 2026

Graciliano Ramos é o meu candidato em 2026

Graciliano Ramos morreu num 20 de março, há setenta anos, em 1953. Nas fotos, a primeira edição de “Caetés”, com a grafia da época e capa de Santa Rosa, e uma edição recente de seus famosos relatórios feitos quando foi prefeito no interior de Alagoas.

Pois então: o que eu tenho a dizer sobre as eternas propostas de reforma administrativa? Pouco ou nada, mas, caso eu deitasse falação sobre o tema, meus princípios seriam os mesmos do prefeito Graciliano Ramos.

Graciliano Ramos
Primeira edição de Caetés, 1953

Explico-me. Antes de Graciliano Ramos ser Graciliano Ramos, ele foi prefeito de uma corrutela, Palmeira dos Índios, cidade que hoje, imagino, deva ter alguma prosperidade, e escreveu então dois relatórios ao governador de Alagoas. Nos tais relatórios já havia a semente do autor de “Vidas Secas”, um texto conciso, muitas vezes irônico, seco como nordestino sofrido por falta de chuva (sem dós de peito, como resumiu Antônio Cândido), tanto que o poeta Augusto Frederico Schmidt, também editor, perguntou-lhe se ele teria algum romance guardado na gaveta. Tinha, justamente o “Caetés”. (Há quem diga que essa história seja lenda; no Nordeste, contudo, assim como no Velho Oeste, “publica-se a lenda”.)

E o que dizia o prefeito Graciliano?

“O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. Para que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela — dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.”

“724$000 foram-se para uniformizar as medidas pertencentes ao Município. Os litros aqui tinham mil e quatrocentos gramas.”

“No cemitério enterrei 189$000.”

Dois Relatorios
Relatórios feitos quando foi prefeito no interior de Alagoas

“Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário, vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha — um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua — um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela — um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.”

“As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem.”

“Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos na praça.”

“Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada da cidade. Chegaram lá pedreiros — outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem. Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que não nos resignemos às modestas tarefas de varrer ruas e matar cachorros.”

“Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.”

“Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem. Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com aparência de primeiro livro de leitura do Abílio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me, até que o Conselho, em agosto, votou o código atual.”

“Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis. Evitei emaranhar-me em teias de aranha. Certos indivíduos, não sei por quê, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridades bastantes para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.”

“Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.”

“Não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.”

“Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os únicos munícipes que não reclamam.”

“A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. Pagamos até a luz que a lua nos dá.”

“Instituíram-se escolas em três aldeias. (…) Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras. Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos (…).”

“Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas muito caprichosas, sobem morros e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e por lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.”

“Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão. Como ninguém ignora que não se obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros.” “Mas para que semear promessas que não sei se darão fruto? Relatarei com pormenores os planos a que me referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer.”

Tudo isso já estaria de bom tamanho, não?

Ah, sim, a edição dos relatórios que tenho foi publicada com o apoio do onipresente José Mindlin — espanto-me sempre com o fato de não haver uma estátua de Mindlin em cada cidade deste país.

Ah, sim, parte 2: muitos sabemos quem foi Graciliano Ramos — mas quem foi o governador de Alagoas em 1929-30? Esse esquecimento não deixa de ser um recado aos políticos: “Vanitas vanitatum et omnia vanitas”.