Último dia para assistir na Netflix ao filme de ação mais intenso e alucinante do cinema nos últimos anos

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É claro que os métodos de John Wick são questionáveis. Mas como viver em meio à mais baixa extração de bandidos do mundo sem ter por eles algum sentimento, mesmo que com o sinal trocado? Como suportar calado o avanço das drogas, vendidas a céu aberto nas esquinas periféricas das metrópoles, e particularmente sedutora aos jovens? Dá para se recorrer à polícia? Será mesmo?

Dando continuidade ao bom desempenho apresentado em “John Wick — De Volta ao Jogo” (2014), Keanu Reeves continua no conforto de encarnar tipos que caminham com destreza ímpar sobre o fio que divide o legal do ilegal, o sujeito digno de toda a admiração e o marginal ardiloso que não hesita em abater perversamente um inimigo. Tirando bom proveito dessa dubiedade moral, Wick se constitui de um criminoso patologicamente solitário, que talvez tenha perdido a capacidade de mensurar o sofrimento que infringe aos outros, mesmo à escumalha mais sórdida, que desafia os princípios humanitários do mais pacifista dos homens. E faz dessa frieza uma importante aliada a fim de ganhar a vida.

“John Wick: Um Novo Dia Para Matar” (2017) redobra a predileção por sequências cada vez mais duradouras, bem dirigidas por Chad Stahelski, que abre mão de todo diálogo mais elucidativo em favor da pancadaria, e do carrossel de fogo e balas que advém dela. E inviável se tentar compreender a mecânica por trás da história sem admitir a importância do componente físico, que Reeves domina como poucos. Chega a dar cansaço reparar em quantas vezes o protagonista, um assassino profissional que volta à ativa para um serviço especial que se revela mais árduo que de costume, se depara com circunstâncias em que seu corpo é lançado de um lado para o outro como se fosse um boneco de pano depois de atropelamentos e explosões — e boa parte desse calvário é vivida pelo próprio Reeves, que recorreu a dublês somente em passagens como a da queda de uma interminável escadaria, em que divide a cena com Cassian, uma performance orgânica do rapper Common, que pode dar saltos consideráveis na nova trajetória e fazer outros papéis com o mesmo denodo.

As notas operisticamente dramáticas do novo trabalho de Stahelski, cheio de detalhes técnicos que captam a atenção do público por meio das perseguições ricamente filmadas e levadas à tela como se fossem peças de um outdoor digital, lance de gênio de Dan Laustsen, tornam-se ainda mais plenas de sentido frente à abordagem propositalmente acelerada do filme, e que mesmo assim não deixa fios soltos. Sempre que pode, o roteiro de Derek Kolstad reforça características do jeito de ser um tanto idiossincrásico do protagonista. Por mais esgotado que esteja, não passa pela cabeça de Wick acatar os conselhos de Julius, o chefão do braço da máfia russa sediada em Nova York, encarnado por Franco Nero numa participação afetiva empolgante, primeiro, porque ninguém lhe diz como leva sua vida; além disso, ainda não acertou as contas com seu passado, e seu ofício é a pedra de toque para tanto. Quanto mais tomado do espírito predatório de alguém encarregado de trucidar um desventurado qualquer, mais se cristaliza em sua natureza a crença existencial de que não pode se dar ao luxo de esmorecer e deve vingar a morte da esposa, Helen, de Bridget Moynahan, que aparece em flashbacks instantâneos, mas tem seu arco dramático satisfatoriamente trabalhado no longa de 2014. Enquanto permitir que esses fantasmas — o de Helen, o da influência mórbida que continua a exercer em sua vida e o pior, o da tibieza com que lida com a questão — rondem sua figura atormentada indefinidamente, Wick não há de se conseguir aproveitar a nova chance que lhe deu o destino. Nem mesmo com o auxílio instintivamente terapêutico de seu pitbull sem nome. A entrada em cena de tipos como o gângster italiano Santino D’Antonio, de Riccardo Scamarcio, que faz um pedido que considera absurdo e, a principio não pensa em atender, postura que se vê obrigado a mudar depois que sua casa é alvo de um atentado, é apenas a primeira de uma porção de crises de consciência — as crises de consciência possíveis a alguém com o seu histórico, frise-se —, que, em maior ou menor medida, passam a acompanhá-lo até o desfecho da trama, de onde se depreende que sua aura de fera arredia, alijada do bando, cada vez mais fera e cada vez mais só, é mesmo um dado de sua natureza.

“John Wick: Um Novo Dia Para Matar” é, a um só tempo, uma provocação e um alento. Keanu Reeves, um dos melhores intérpretes desses homens amargurados, que só encontram no confronto físico razão para viver e justificativa para a vida que escolhem, faz do filme de Chad Stahelski exatamente o que ele deve ser: uma fonte de inesgotável de assombro diante das implausibilidades que o estar no mundo nos lança ao rosto.


Filme: John Wick: Um Novo Dia Para Matar
Direção: Chad Stahelski
Ano: 2017
Gênero: Thriller/Ação
Nota: 9/10