Ação com Idris Elba, na Netflix, é o filme mais visto do mundo na atualidade, em 120 países John Wilson / Netflix

Ação com Idris Elba, na Netflix, é o filme mais visto do mundo na atualidade, em 120 países

Atores talentosos sentem-se no direito (e alguns mesmo na obrigação) de ousar — felizmente. Que outro predicado além da aptidão no modo de conduzir o próprio ofício, dando preferência a trabalhos considerados por muitos críticos como simples birra diante do pretenso desprezo de um diretor ou de um estúdio num filme de maior alcance, decerto, mas exasperantemente parecido com tantos outros, pode justificar a arriscada decisão de bancar a irresistível vontade de mudança, de inovação, de dar ainda mais vigor a uma carreira que vai de vento em popa? Não restou muito bem explicado o motivo que levou Idris Elba a ser desconvidado a dar vida ao espião mais famoso do cinema, mas Elba não passou recibo, conforme se assiste em “Luther: O Cair da Noite”. James Bond deu lugar a John Luther num drama que nunca descai para o óbvio e tampouco faz concessões ao entretenimento gratuito, malgrado esteja visceralmente imbricado a uma série de televisão tornada febre no Reino Unido ao longo de uma década inteira.

A continuidade de “Luther” (2010-2019), a serie criada por Neil Cross e exibida pela BBC One, a principal emissora da rede BBC, sob a forma de um longa de mais de duas horas dispõe do protagonista na pele de um homem atormentado, anti-herói pleno de particularidades que mais o distanciam que o tornam objeto de paralelismos razoáveis com o tipo muito menos dramaticamente profundo criado por Ian Fleming (1908-1964). O personagem-título do filme de Jamie Payne, um detetive numa quadra nada feliz da carreira, parece mesmo o espectro que o diretor quer fazer dele. Sempre muitos tons abaixo do temperamento eufórico que se poderia esperar de um mocinho numa trama congênere, Luther investiga o caso que minutos depois há de definir o rumo de sua vida e seu desempenho profissional, para a pior. Enquanto isso, a edição de Justine Wright mostra na abertura um edifício vazio e iluminado, como se perdido na noite londrina, cenário imprescindível para que se absorvendo aos poucos a atmosfera noir proposta pelo roteiro de Cross. Intérprete a um só tempo vigoroso e delicado, Elba capta como poucos o sem fim de nuanças de Luther, mormente depois que Payne começa a deslindar o crime de que seu personagem central passa a se ocupar, um desaparecimento e uma suspeita de suicídio. A primeira das grandes reviravoltas mostra o investigador enfrentando um malogro profissional que implica a maior das humilhações para um sujeito como ele, fazendo com que troque o surrado capote cinza por um uniforme de presidiário.

As cenas de Luther na cadeia, onde se mistura aos presos comuns — nunca é demais exortar o público a recorrer da licença poética —, vêm a lume encadeadas com as subtramas em que Cynthia Erivo ganha destaque como Odette Raine, uma policial cuja vida pessoal também é marcada por desbalanços emocionais que hão de terminar por levá-la a ter de solucionar o caso mais doloroso de sua vida. Elementos sensoriais inócuos a uma análise mais ligeira, como um telefone que insiste em tocar ou a veiculação em tela cheia da vinheta de um absurdo reality show, tentam manter o espectador em sintonia com tudo o mais de esdrúxulo que se desenrola no filme, episódios com a força dramatúrgica de uma carnificina no palacete de um milionário saudita, um incêndio de natureza tão incontrolável como sibilino e um motim na prisão que custodia Luther.

O terceiro ato engendra uma possível redenção para esse anti-herói cansado de guerra, frisando a atuação de Andy Serkis como David Robey, o assassino em série que espalha pânico e caos na capital inglesa e tumultua a vida de John Luther. Assumidamente episódico, porém fluido, televisivo sem deixar de ser cinema, o filme de Jamie Payne diverte mesmo quem não têm compromisso lá tão sólido com as peripécias de galãs de outros tempos em narrativas datadas, mérito de Idris Elba, o homem que matou 007.


Filme: Luther: O Cair da Noite
Direção: Jamie Payne
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 8/10