Como se fosse um filme de Tarantino, comédia de ação com Mel Gibson, na Netflix, vai tirar seu fôlego Divulgação / Splendid Film

Como se fosse um filme de Tarantino, comédia de ação com Mel Gibson, na Netflix, vai tirar seu fôlego

Vivemos também nas nossas lembranças e nos mantemos vivos por meio delas. Essas imagens de momentos que de algum modo nos marcam ou se encurta demais, ou se estende para além do tempo que julgamos razoável, a depender justamente do que vêm a significar para nós. “Entre Armas e Brinquedos” remonta à ideia de uma época particularmente feliz dentro do tempo, apesar de cada vez menos resistente às pressões da economia, à corrupção dos hábitos, à hipocrisia das relações humanas, ao mundo, enfim. Só sabemos que passamos da conta quando a conta desaba sobre nossas cabeças, arrastando-nos para o turbilhão de mil pensamentos tortos que integram-se ao nosso dia a dia, irredutíveis no propósito de nos punir por algum crime hediondo que não cometemos. A comédia dos irmãos Eshom e Ian Nelms transcorre nas imediações de um Natal especialmente turbulento para uma figura modelada e remodelada ao gosto da macroeconomia, num vínculo até então bastante satisfatório para as duas partes. Mas não há bonança que dure para todo o sempre.

Tramas sobre a magia do Natal — e seus respectivos contratempos — pontuam o cinema por âmbitos os mais segmentados, de “Esqueceram de Mim” (1990), em que Chris Columbus narra as desventuras de um garoto forçado a sobreviver a bandidos sem a família, que passa as festas sem ele depois da típica correria natalina, a “O Grinch” (2000), de Ron Howard, no qual o espírito de porco de uma criatura ranzinza e vingativa se encarrega de dar cabo da celebração mais aguardada de todo o ano. O roteiro dos Nelms presta-se a reunir num enredo sem lugar para obviedades a reação de um certo Chris Cringle à insistência do restante da humanidade quanto a arruinar o Natal — seja inconscientemente, obstinada em conservar o reprochável modo de vida que empurra-nos para um abismo sem volta, seja de propósito, passando por cima de quem quer que seja para ver nossos sonhos se apossarem do duro cotidiano. Billy Wenan, o riquinho mimado da vez, é uma das personificações do menoscabo pelo bem e pelo altruísmo que o Natal encerra, e os diretores valem-se desse gancho para elaborar o argumento central, o desespero de Chris, de um Mel Gibson visivelmente fora de forma, mas não balofo como enuncia o título original e também não a ponto de incorporar o Papai Noel de acordo com a imagem que fazemos dele desde 1931, graças à matadora campanha publicitária daquela famosa marca de refrigerantes. No entanto, a performance de Gibson não deixa que pairem quaisquer dúvidas acerca da identidade desse bom velhinho, que transmite o desencanto com o mundo, com o homem e, o principal, com as crianças, lançando mão dos vívidos olhos azuis, mesmo que soterrados debaixo da barba hirsuta e grisalha — a cena em que comunica aos elfos a “parceria” com o Exército na fabricação de artefatos de guerra é decerto das mais poéticas do cinema recente, nascida clássica com o primeiro plano de Traton Lee fechando no semblante desolado do protagonista —, incapaz de manter aquecida Ruth, a companheira vivida por Marianne Jean-Baptiste, uma Mamãe Noel negra e igualmente extenuada, mas a própria encarnação da doçura e da tal resiliência.

Os embates eminentemente retóricos entre Chris e Billy descambam para um enfrentamento físico, não obstante mediado pelo tipo asqueroso de Walton Goggins, esse, sim, um legítimo grinch, um duende maldito e perverso que quase arruína o Natal para sempre. Diria que é uma pena que um filme como “Entre Armas e Brinquedos” — um evidente e despropositado trocadilho com o ótimo “Entre Facas e Segredos” (2019), levado à tela por Rian Johnson — estreiem já às vésperas do Carnaval, mas me remendo. Se fossem todos como este trabalho dos irmãos Nelms poderiam vir à mancheia, dois por semana. Até porque o Natal sempre passa, mas seu espírito deve permanecer.


Filme: Entre Armas e Brinquedos
Direção: Eshom e Ian Nelms
Ano: 2020
Gêneros: Comédia/Drama/Ação
Nota: 9/10