Filosófico e perturbador, filme na Netflix feito para corações fortes vai te abalar até os ossos Kimberley French / Open Road Films

Filosófico e perturbador, filme na Netflix feito para corações fortes vai te abalar até os ossos

Em “O Sonho de um Homem Ridículo”, conto publicado em 1877, Dostoiévski narra a história de um homem desacoroçoado, desesperançoso, perdido, tão insignificante que o autor sequer deu-se ao trabalho de dar-lhe um nome. Esse homem vaga pelas ruas mal iluminadas de uma São Petersburgo fustigada por um inverno que não tem clemência. O sujeito se deixa tomar por pensamentos monomaníacos de impotência e morte, o que já não lhe diz mais nada: ele era irremediavelmente um homem sem nenhuma importância, nem para os outros nem para si mesmo. Um homem ridículo. Pano rápido.

Alasca, 2011. O protagonista vivido por Liam Neeson em “A Perseguição”, tem nome e sobrenome, mas vaga por aqueles sertões enregelantes ao norte do globo clamando aos céus, ainda que não o saiba (e se o soubesse, jamais o admitiria), por um qualquer motivo que o segure aqui embaixo, absorto na loucura que sempre perpassou a vida de todos nós, mais de um que de outros, mas de todos — o velho Fiódor, esse bastião à racionalidade, essa fonte imorredoura de lucidez para gente de todas as pátrias, sangues e eras, não chegou a enlouquecer, mas esteve a paredes meias com a insânia, acossado pelo vício em jogo, pelas indefectíveis dívidas que dele nasceram, pelas apreensões diabólicas que dominam todo artista de vulto e o arrastam para inquietações descabidas quanto à grandeza de sua arte (Dostoiévski!), pelas agonias mesmas do existir, que afligem qualquer um que ame a própria vida como ele amou, depois, que se diga, de ter escapado de um fuzilamento na undécima hora, em 22 de dezembro de 1849, graças ao perdão humilhante do czar Nicolau I, canalha fundamental, como todos os monarcas, com ou sem coroa. A partir de então, Dostoiévski encontra em si o tal amor pela humanidade, a tal compaixão pelo homem, esse animal condenado a viver, que define sua obra. Mas volto ao leito.

John Ottway, este homem, também encara seus problemas com a vida como ela é, perdendo a razão aos poucos, incapaz de esboçar uma reação, ao menos um pedido de socorro, frente aos muitos desafios que a vida lhe impõe, até que a desdita o colhe. O diretor Joe Carnahan ressalta a melancolia de seu protagonista abrindo “A Perseguição” com o plano-sequência de um céu cinzento — este é mais um caso de erro grosseiro quanto à escolha do nome em português —, em tudo adequado à personalidade de Ottway e do lugar inóspito para onde foi a fim de se refugiar da morte da esposa, o que, naturalmente, não seria possível. À medida que a história toma corpo, o roteiro de Carnahan e Ian Mackenzie Jeffers decifra um pouco mais essa figura esfíngica, e quase se poderia supor que Ottway é um sujeito normal, exorcizando seus fantasmas com alguma dificuldade, sofrendo com as imagens que não consegue apagar da lembrança, prolongando sua fuga pela vida afora, distanciando-se do mundo e de si mesmo. O ponto de virada que Carnahan e Jeffers vislumbram para permanecer com o mistério é um acidente aéreo, quando o personagem de Neeson escapa da morte junto com mais sete homens, seus colegas na estação petroleira onde trabalham.

O diretor começa a preparar o espectador para as importantes guinadas da trama ao passo que arredonda certas rebarbas no que diz respeito à composição de Ottway. Fica-se sabendo que ele é um caçador de lobos tarimbado, ofício muito valorizado numa região inóspita, onde a vida torna-se ainda mais difícil por causa dessas criaturas instintivamente violentas, que atacam qualquer um que se atreva a lhes invadir o habitat. Neeson incorpora a contento o espírito de seu personagem nessa conjuntura, conferindo a Ottway a aura de herói que se quer dele. Lamentavelmente, nem tudo sai como seria desejável entre os homens, com as discussões e os atritos de praxe em situações de desgaste extremo como essa — malgrado a crescente animosidade entre marmanjos sucumbindo à loucura da incerteza sobre se irão continuar vivos ou não jamais descambe para o enfrentamento físico. Como líder espontâneo dos sobreviventes, Ottway é compelido a tomar decisões salomônicas, que mais contrariam que agradam. Até que passa a restar pouco tempo para lamúrias e as contingências agudizam-se ainda mais.

“A Perseguição” e um filme de um ator só — não obstante o bom elenco de apoio, com destaque para o encrenqueiro John Díaz, de Frank Grillo —, tal como “O Regresso” (2015), de Alejandro Gonzáles-Iñárritu, que repisa o argumento central do filme de Carnahan, um homem destemido, mas cheio de medos, arrostando feras, metáfora que se explica por si só. Mas Carnahan plagia mesmo é Dostoiévski, sem o saber, ao falar de um homem que procura pela morte sofregamente, mas ao deparar-se com ela, enxerga um propósito para continuar, agarra-se à vida e se salva, mesmo com um momento involuntariamente lírico de rebeldia contra o Céu. Sempre cinza, como sua própria vida.


Filme: A Perseguição
Direção: Joe Carnahan
Ano: 2011
Gêneros: Thriller/Drama/Ação/Aventura
Nota: 8/10