Intenso como uma pedra na garganta, filme da Netflix vai te perturbar por semanas Benjamin Loeb / Netflix

Intenso como uma pedra na garganta, filme da Netflix vai te perturbar por semanas

Dizem que o amor de uma mãe para o filho é algo transcendental, que a maternidade é sagrada e que o elo da mulher com a criança é algo que os pais jamais conhecerão. Tudo isso é uma construção social para atribuir uma responsabilidade maior à mulher sobre os filhos. O amor nem sempre nasce no ventre. Como todo amor, precisa de tempo, é necessário florescer e se solidificar. Se o vínculo da mãe é maior, talvez seja porque a maioria dos pais não estão se esforçando o bastante para criar um laço similar. O mesmo estranhamento do pai diante da criatura filho, a mãe também experimenta. Ela só sente mais culpa e responsabilidade que o homem, por isso, vê que é seu dever, acima de tudo, proteger aquele pequeno ser indefeso. A diferença entre mãe e pai, homem e mulher, é humanidade.

Mas algo da maternidade que o homem não carrega e não vive é a gestação. Não há momento mais solitário da vida que este. A mulher que não se sentiu sozinha, mais vulnerável e mais incompreendida durante a gravidez realinhou os chacras, descobriu o segredo dos monges budistas que ateiam fogo no próprio corpo, desvendou a receita da mais genuína serenidade. O parto, dizem, é a pior dor que um ser humano pode experimentar. E é. Agora experimente vivenciar uma gravidez e um parto e sair disso tudo sem uma criança nos braços. Isso eu não posso imaginar. Está além do que qualquer razão pode compreender, sustentar, justificar. Para mim, deste lado daí só existe a loucura e o desespero. Qualquer reação que a mulher tenha após vivenciar isso, é legítima defesa em prol de sua sanidade.

A primeira vez que vi “Pieces of a Woman” eu estava grávida, sentindo todas aquelas emoções inexplicáveis e efusivas. No meio de uma pandemia, chorando sozinha no banheiro, pensando que talvez em uma semana eu não estaria mais viva, por causa de um vírus mortal, para cuidar do meu bebê. Outras vezes, pensava em violência obstétrica e nas inúmeras formas que meu filho poderia ser torturado por um médico durante o nascimento: sendo arrancado à força da minha barriga, sendo exposto às luzes do centro cirúrgico, sendo colocado em um bercinho de plástico solitário em meio a outras dezenas de bebês desconhecidos, longe do meu calor.

Em outras, me batia um desespero fantasioso. Uma invasão noturna, um bandido fugitivo que me desse um tiro na barriga ou me esfaqueasse no útero. Depois, o medo da responsabilidade, de perder minha identidade, minha independência, meus sonhos. Os medos e ansiedades são muitos durante uma gravidez. Se tem algo que não recomendo é ver “Pieces of a Woman” grávida, como eu fiz. O filme, por si só, já retrata os maiores terrores de uma mulher. Um parto difícil, doloroso, com uma médica desconhecida e que culmina em seu aguardado bebê morto.

O filme mexe com o emocional do espectador, seja ele mãe ou pai, e nos dá a consciência, que às vezes desaparece, de que mesmo um evento tão natural quanto o nascimento de um filho pode se tornar uma sessão de terror e pânico. Mas a perda de um bebê não é só traumática no momento em que acontece. Apesar de nunca ter havido a convivência com a criança, há a dor do membro fantasma. A perda de algo que era para estar ali e não está. Uma dor excruciante que apunhala a própria existência da mãe e do pai.

Em “Pieces of Woman”, de Kornél Mundruczó, narra o paradoxo do enfrentamento dessa dor entre o pai e a mãe. Enquanto Martha (Vanessa Kirby) se isola, tenta apagar a memória dolorosa do filho tentando reduzir sua existência para não enlouquecer, Sean (Shia LaBeouf) precisa da lembrança, do sofrimento do luto, da sepultura sobre sua cova. Ambos se afundam em comportamentos autodestrutivos, mas de formas diferentes. Enquanto Sean afeta as pessoas ao seu redor, é como se Martha cavasse um fosso profundo para enterrar a si própria. Enquanto passam pelo sofrimento inenarrável, as pessoas cobram certos comportamentos, como a mãe de Martha que exige que ela confronte a parteira no tribunal, sendo que ela ainda não consegue nem encarar a si própria no espelho sem sentir que fracassou como mãe, por ter deixado seu bebê morrer.

O roteiro foi escrito com base na própria tragédia da perda de um filho da roteirista Kata Wéber com Kornél Mundruczó e transmite de maneira muito intensa e sensível quão doloroso pode ser um momento como esse. Com a morte de um bebê, morre um sonho, uma vida que poderia ter sido e não foi, uma felicidade que passa como um cometa furtivo no céu e some no horizonte, uma esperança natimorta, ofuscada no abismo da alma.

“Pieces of a Woman” não é um filme para todos. Aliás, é para poucos, porque é, acima de tudo, um gatilho. Provoca medo, sofrimento e angústia, mesmo se você nunca perdeu um filho, ou sequer engravidou ainda. Mas é como olhar na face da morte e reconhecê-la como real, como parte da vida.  O filme é necessário, porque poucas vozes falam ou já falaram por mães que passaram por este tipo de luto, inúmeras vezes menosprezado pela sociedade.


Filme: Pieces of a Woman
Direção: Kornél Mundruczó
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 9/10