Filme da Netflix com Jim Parsons vai te chocar e surpreender Everett White / Netflix

Filme da Netflix com Jim Parsons vai te chocar e surpreender

Ser gay já foi muito mais difícil. Em 1968 — um ano antes da desastrosa incursão da polícia ao Stonewall, célebre bar que reunia homossexuais masculinos numa Nova York  sexualmente democrática, na madrugada de 28 de junho de 1969 —, ninguém cogitava admitir que houvesse outras modalidades de amor que não aquele que dissesse respeito a um homem e uma mulher, de preferência unidos em matrimônio com a manifesta intenção de constituir família, embora todo mundo soubesse que essas pessoas, pagadores de impostos como o restante da população, existissem e estivessem muito mais próximas do que alguns gostariam. Da intolerância desses embates silenciosos, originavam-se episódios como o que marcou a luta pela igualdade de direitos, tornada motivo para passeatas e atos políticos em que se fazia questão de mencionar o orgulho de ser diferente: diferente, não uma aberração. O ataque a Stonewall teve a força de congregar uma classe particularmente competitiva entre si, que nutre suas idiossincrasias e fomenta seus preconceitos específicos, características que voltaram com toda a carga numa época sem a necessidade de guetos para se expressar a identidade e vivenciar o amor, ou apenas o prazer.

Um anfitrião nada gentil reúne seis amigos, um penetra e um convidado bastante sui generis a fim de celebrar o aniversário de um deles, e a partir desse ponto são liberadas doses de rancor, cinismo e mesmo ódio, sutis, mas com poder suficiente para desmantelar amizades fortes só na aparência. Joe Mantello aborda as tantas particularidades das relações entre homens em “The Boys in The Band” (2020), documento de uma fase e de um nicho social pleno de dores e delícias. A história nasceu originalmente nos palcos da Broadway, assinada por Mart Crowley (1935-2020); dois anos depois, ratificaria o sucesso inicial agora nas telas, pelas mãos seguras de William Friedkin, e por fim, voltaria à baila em 2018, lembrada por Mantello pelo seu cinquentenário. Dispondo de um elenco afinado, composto por gays assumidos e talentosos, cuja trajetória não deixa dúvidas sobre a boa carreira que o longa faria, a versão do diretor, roteirizada pelo próprio Crowley, no seu canto do cisne, e Ned Martel, conta com a produção do incansável Ryan Murphy, o nome por trás  de empreitadas caras ao público homossexual, a exemplo das séries “Halston” (2021) e “The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story” (2018), biografias de dois grandes estilistas mortos em circunstâncias trágicas.

A festa em torno da qual gira a narrativa é dada por Michael em homenagem a Harold, de Zachary Quinto, que completa 32 anos e só aparece muito tempo depois que o personagem de Jim Parsons dispara o gatilho de sua metralhadora cheia de mágoas. Ainda mais arguto devido à renúncia ao álcool — que no seu caso mais parece a autopenitência construída ao longo de anos da culpa católica por não poder conciliar duas naturezas que se anulam entre si —, é Donald quem atura as diatribes insuportavelmente amargas do dono da casa. Donald, interpretado por um Matt Bomer num grande momento, é o arquétipo do gay socialmente perfeito: bonito, discreto, refinado (ainda que ganhando a vida como zelador no subúrbio), solidário (malgrado esse comportamento não raro seja visto como tendo muito de dissimulação, sobretudo entre homens gays) e algo deslocado por tudo isso. Aos poucos, baixam na cobertura de Michael os outros convivas desse festim diabólico, cada qual representando uma segmentação dentro da segmentação, reprodução proposital de estereótipos e caricaturas: há o latino e efeminado Emory, de Robin de Jesús; o negro Bernard, de Michael Benjamin Washington, inclinado à música; o casal clandestino Hank e Larry, papéis de Tuc Watkins e Andrew Rannells; e o prostituto burro e sarado vivido por Charlie Carver, contratado como homem-objeto de Harold.  Fecha a roda Alan, o ex-parceiro de Michael, encasulado num casamento heterossexual que leva ao desespero, excelente contraponto melodramático de Brian Hutchison.

Um jogo proposto pelo patrocinador do convescote anima a noite, até que, entre indiretas sobre calvícies iminentes, ganho de peso combatido com barbitúricos, o medo de envelhecer e a solidão que fustiga especialmente pessoas fora dos padrões o clima esquenta para além do recomendável. Mantello é capaz de dominar a verborragia do grupo — que decerto incluiu uma montanha de cacos no texto de Crowley — e conduzir a trama para o encerramento poderoso que ainda hoje a destaca. Transcorridas cinco décadas, “The Boys in the Band” continua atual como um retrato amplo da discriminação velada (ou nem tanto), também entre pessoas com interesses e aspirações em comum. Politicamente incorreto, o filme conserva a picardia do formato teatral, seu grande trunfo diante de certas catequeses em que se tropeça a todo instante por aí.


Filme: The Boys in the Band
Direção: Joe Mantello
Ano: 2020
Gênero: Drama/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.