Um homem leva uma vida tranquila no povoado onde mora com a família, tocando uma pequena casa funerária e fazendo alguns trabalhos como carpinteiro. A rotina sem sobressaltos é decerto a grande vantagem de se viver num lugar assim, mas o sossego da comunidade sofre abalos pela chegada de um visitante malquisto, que acaba ficando de vez, para o desespero de toda a população de bem. Como se por encanto, de um momento para o outro a paz que reinava por ali cede espaço a dias de ânimos exaltados, agitação do espírito e gozo efêmero do corpo, realidade caótica que vai degringolando em tumulto, caos, morte. Uma nova ideia de obediência ao Estado se institui, a própria noção de Estado se deteriora, ao passo que aqueles que poderiam elevar sua voz e exigir que se mantivesse tudo como sempre houvera sido, comodamente, covardemente, se calam. Era essa a última barreira a ter de cair para que se instalasse de vez um regime anárquico, primitivo, em que tornaria a valer a máxima do olho por olho, dente por dente, até que o vilarejo fosse um reino inglório de cegos e desdentados.
A relação entre dois tipos que deveriam se repelir e se odiar é o ponto de partida do diretor irlandês Ivan Kavanagh em “Terra Sem Lei” (2019), western sobre as tantas contradições humanas num lugar sem esperança, amaldiçoado pelos mais baixos apetites da matéria. Kavanagh se inspira em ninguém menos que no Sérgio Leone (1929-1989) de “Por Um Punhado de Dólares” (1964), que por sua vez nasceu da adaptação de “Yojimbo” (1961), dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998). Aqui, como na mexicana San Miguel idealizada por Leone, o ambiente também resta subitamente pequeno para a lei e os interesses escusos de figuras como o caubói sem nome vivido por Clint Eastwood, talvez o papel em que tenha flertado mais desabridamente com a zona cinzenta que separa mocinhos de vilões. Era nela que Eastwood se movia, da mesma forma que o personagem central do trabalho de Kavanagh, um sujeito que se mostra pouco afeto a sutilezas retóricas como moral, ética ou decoro — até porque o cenário que o rodeia liga-se estritamente a essa realidade de anomia, por mais que não se possa nunca admitir qualquer justificativa para a barbárie. Diferentemente do que se observa no clássico do italiano, no filme do irlandês não ocasião para que o anti-herói e o antagonista se tornem amigos, e nisso Kavanagh leva vantagem sobre Leone. Sinal dos tempos.
Em “Terra Sem Lei”, o candidato a salvador arrependido é Patrick Tate, em nada semelhante ao tipo encarquilhado e dado a gracinhas que rivalizava com o protagonista de “Por Um Punhado de Dólares”. Emile Hirsch parece ter incorporado o espírito do artesão a que dá vida no filme e compõe um personagem rico de nuanças, como se saído da melhor carpintaria do cinema. Estabelecido há algum tempo em Garlow, ao norte da Trilha da Califórnia iniciada no oeste do Missouri, Tate, irlandês, leva uma vida modesta, mas digna junto com a esposa francesa Audrey, de Déborah François, e os dois filhos, Emma e Thomas, de Molly McCann e Quinn Topper Marcus. Os preceitos religiosos evocados pelos Dez Mandamentos são mencionados exaustivamente pelo reverendo Samuel Pike, personagem de Danny Webb, casado com uma mulher 25 anos mais jovem, Maria, interpretada por Antonia Campbell-Hughes. Ninguém se opõe à autoridade nem de Deus nem do homem, mas a chegada de um forasteiro, imigrante como quase todos ali, deita por terra a paz de Garlow. Kavanagh começa a erigir metáforas interessantes com a entrada em cena de John Cusack encarnando Albert, o Holandês, um rematado bandido que começava a ganhar fama nos rincões da América. Vestido de preto da cabeça aos pés, além do chapelão de abas largas que verdadeiramente o distingue dos outros, Albert parece completamente imune ao ambiente de falsa piedade de que a cidadela tanto se orgulha — e nisso, infelizmente, está coberto de razão, como se assiste na sequência em que, como o reverendo Pike, também se põe a dizer um sermão para a senhora Crabtree, de Anne Coesens, que vai lhe pedir emprego, mas recusa suas condições. Dedicado a colocar abaixo cada um dos pilares da frágil civilidade daquele fim de mundo dos Estados Unidos de meados do século 19, o personagem de Cusack propaga sua catequese às avessas, instalando um prostíbulo a uma parede da igreja do reverendo. Ali, no desfecho da história, ele e Tate acertam suas contas, manchando de sangue um Cristo crucificado e tomado de escândalo pelos descaminhos dos dois, uma das imagens mais terrificantes do cinema contemporâneo.
Filme: Terra Sem Lei
Direção: Ivan Kavanagh
Ano: 2019
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10