Um amor profundo demais para ser revelado Lasse Behnke / Dreamstime

Um amor profundo demais para ser revelado

Lambia os seus pés de louça besuntados com melaço numa cama de açúcar, quando a luz do celular brilhou na penumbra. Era Salete dizendo quando vier para casa, traga pão, traga leite e traga também duas caixas de Rivotril, pelo amor de Deus, senão eu surto, beijos, te amo. Só quem tomava aquele tipo de veneninho sabia o quando era sofrível ficar sem um estoque regulatório por perto. Logo se sentia uma estranha agonia, um troço implausível tripudiando no vazio, um demônio a ciscar para dentro, um esboço de pânico só em pensar na reles possibilidade de ficar sem os malditos comprimidos.

Enquanto enzonavam nas preliminares de uma sova, tocava no streaming a canção “C’est la vie”, na versão com Emerson, Lake & Palmer. Sylvia perguntou se, na opinião dele, aquilo era feio ou bonito. Aquilo o quê, Sylvia? — perguntou, marchando nu pelo quarto com a bandeira do amor hasteada a meio mastro. A música, ora essa — ela respondeu. Sylvia era uma garota de programa bilíngue, de língua presa, um defeitinho congênito que lhe garantia um charme adicional, além da cultura acima da média para quem fazia sexo única e exclusivamente por causa de dinheiro. Fins reprodutivos era o cacete. A humanidade não merecia ser perpetuada.

Você a sente como eu a sinto? Me diga: esta canção é triste ou é simplesmente linda? — insistiu, radiante como o pôr do sol sobre uma legião de corpos seminus num balneário à beira mar. Fica de quatro, por favor — ele pediu, cuspindo na palma da mão como se fosse defender um pênalti. Sylvia não o atendeu de imediato. Ela apagou o Jeronimo’s na orelha do Dumbo. Parecia não ter mais ninguém com ela naquele recinto além dela e do cinzeirinho de vidro com a cara de um elefante. Bebericou um pouco mais de Cuspe Sour. Estava alta. Falou em ir mijar, em dar um tempo, em conversarem um pouco mais a respeito daquela inusitada sensação de melancolia que subitamente a afligia. Ainda era cedo. Não tinha mais clientes para atender no feriado da santa padroeira.

Era uma jovem branca, esguia, lisa e delicada como uma tulipa espetada nos jardins de Holambra. Era uma mulher mais livre do que uma rajada de vento. Os micróbios não cultivavam melindres de raça e de gênero, não estavam nem aí para a aparência das pessoas. Quem via cara não via coração. Era assim mesmo que o contágio funcionava. Assim era a vida. Assim era a vida. Impaciente como um potro no noviciado, o sujeito se esticou todo, apanhou o celular e aumentou o volume para escutar melhor aquilo. Identificou algo na melodia que parecia ser um realejo. Não era tão estúpido quanto se imaginava. O que essa música tem de diferente, Sylvia? — pesquisou. Ela comentou que a canção remetia a seu pai que fora raptado de dentro de uma sala de aula pelos dogues militares durante a ditadura.

Um dia, há muito tempo, quando ainda menininha, deparou-se com o pai sentado sobre uma urna entupida de livros e de panfletos com temáticas libertárias, ouvindo “C’est la vie”, com os olhinhos fechados e dois graúdos filetes de lágrimas fugindo dos seus olhos encovados sobre o terreno facial vincado de sonhos e de fracassos. Pensou que o pai andava triste, mas, ele garantiu que não, que não se sentia triste; talvez, quem sabe, mais emotivo do que a média dos últimos tempos. Determinadas canções faziam-no chorar tipo cebola cortada. Sabe quando uma música te dilacera por dentro, principessa? — perguntou.

Naquela época, ela ainda não sabia. Era apenas uma moleca brincalhona, sem curvas e sem malícia. Ainda não tinha sido abusada pelo tio, assim que o pai sumiu pelas mãos asquerosas do Estado. Ainda não tinha se apaixonado por nenhum colega de escola, nem completado o ensino médio, muito menos, se formado em Letras. Hoje, era uma mulher crescida, murcha nos descuidados canteiros interiores, tipo uma planta que ninguém aguava, e entendia um pouco mais sobre música, sobre literatura, sobre pessoas e sobre dinheiro.

Fica de quatro, cadelinha — ele insistiu, com menor delicadeza, depois de ter cafungado outra carreira de saúvas sobre a penteadeira de puta. Quem conhece quem se importa comigo? — ela pensou, ao atender o pedido do cliente. Arrebitou o quadril magnífico. Esperou o familiar tranco por detrás. A música lhe penetrava aonde nenhum homem já tinha alcançado. Cerrou as pálpebras. Sentiu escaparem-lhe dos olhos esguichos de lágrimas com cheiro de lavanda, sobre a varanda suave do seu rosto. Ao gosto do cliente. Ao gosto do cliente — ruminava o velho mantra. A tela do celular piscou de novo na escuridez de cada um. As recomendações eram literais: não se esqueça do pão, do leite e do Rivotril; não se demore, tem visita aqui em casa, beijos, te amo.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.