O filme agonizante da Netflix para pessoas de estômago forte e mentalmente inabaláveis Divulgação / Anchor Bay

O filme agonizante da Netflix para pessoas de estômago forte e mentalmente inabaláveis

Numa época em que termos como “masculinidade tóxica”, “sororidade” e “fluidez de gênero” pularam das rodas de conversas direto para as páginas dos jornais e os debates na televisão, tecer qualquer comentário sobre filmes como “Doce Vingança” é uma dupla temeridade. Se por um lado, a retaliação a que alude o título é justa — do ponto de vista da revanche em si, isto é, o ordenamento jurídico fica de fora —, por outro é simplesmente impossível a qualquer indivíduo que reivindique um laivo de estima pela civilização endossar as barbaridades assistidas no filme — cujo realismo estarrecem — contra quem quer que seja.

Bola no chão. O “Doce Vingança” de 2010 é uma releitura da produção de 1978, “I Spit on Your Grave” (“cuspo na sua cova”, em tradução literal, e muito mais condizente com o espírito do longa). Aqui, Steven R. Monroe conserva o teor violento do original de Meir Zarchi, batizado sob o título nada genial de “A Vingança de Jennifer”, equilibrando matematicamente o clímax do primeiro ato, marcado pelos abusos, ao ápice do segundo segmento, quando há a reação da vítima. Essa vítima, Jennifer Hills, é uma escritora de tramas de suspense (outra) que aluga por dois meses um chalé num lugar completamente isolado a fim de concluir seu livro. Como sempre acontece em narrativas assim, mormente em cidadezinhas perdidas no mapa, a novidade da moça sofisticada e bonita que se muda, mesmo que temporariamente, para um cenário tão pouco de acordo com o que aparenta provoca certa comoção e, por óbvio, incomoda também. Principalmente quando ela ousa parar num posto de combustível e encher sozinha o tanque do carro, dispensando a ajuda — e o flerte — de Johnny Miller, o frentista que a atende. Por mais que a patrulha chie, resta evidente a tensão sexual entre os personagens de Sarah Butler e Jeff Branson, que não tem nada de mais. O único problema aqui é que Jennifer e Miller não estavam sozinhos (e se ele fosse um pouco menos burro poderia ter se dado bem) e seu fracasso como macho imediatamente vira motivo para a chacota dos outros funcionários, Stanley, vivido por Daniel Franzese, e Andy, de Rodney Eastman. É precisamente isso o que um tipo como Miller não suporta.

Existem muitas abordagens possíveis para que o se viu e o que se vai ver em “Doce Vingança”, todas clamando por sensatez. Antes de mais nada, causa espécie o comportamento histérico de Jennifer, que não consegue se desvencilhar de uma cantada estúpida sem ser também ela deselegante — e essa breve passagem tem o condão de explicar muito e antever seu comportamento depois que a desdita a colhe. Ela havia pedido a Miller informações a respeito da localização exata do chalé — e demos de barato que seu celular não tivesse GPS, recurso disponibilizado para o consumidor desde o início da década de 2000 —, era no mínimo desejável que fosse cortês, até porque ele passara a saber onde poderia encontrá-la. Fica no ar um espírito de rivalidade, como se Jennifer provocasse o personagem de Branson, que por seu turno, boçal como ele só, interpretara esse como sendo um sinal de que teria alguma chance. Não tinha, como se comprova na sequência, mas o estrago já tinha sido feito. Dias depois, a protagonista solicita os serviços de Matthew, o bombeiro hidráulico interpretado por Chad Lindberg. De tão agradecida, Jennifer tem um arroubo e o beija no rosto, com a leviandade de uma adolescente, mesmo do alto de seus 25 anos. Conforme se vê pouco depois, Matthew tem limitações intelectuais que, claro, lhe impedem de processar o que se deu. Dias mais tarde, Miller, Stanley e Andy, além de Matthew, vão atrás de Jennifer, munidos de uma filmadora a fim de gravar todo o jogo sádico e criminoso a que se dedicam e, assim, gerando uma prova irrefutável contra a gangue.

O que se vê a partir desse ponto é o que de mais baixo pode se esconder sob a alma humana e só vendo para crer — e infelizmente, vai piorar. A personagem de Butler consegue se livrar de seus algozes e fugir pela floresta que circunda a cabana, quase nua, quando é encontrada por Storch, o xerife do condado vivido por Andrew Howard, que a escolta até em casa. Evidentemente, algo de obscuro haveria por trás da figura do policial, uma vez que ainda falta muito para que os tormentos de “Doce Vingança” cheguem ao fim. Depois de interrogada, como se tivesse passado de vitrine a marreta, constrangida e acusada de crimes como tráfico de drogas por ter fumado um cigarro de maconha — que continuaria negando ser dela, não fosse Storch lhe avisar sobre a marca de batom —, os bandidos liderados por Miller voltam e o xerife, “um homem temente a Deus”, como se diz, junta-se a eles nas sevícias contra Jennifer. A cena se desloca para o bosque outra vez (!) e a protagonista novamente (!!), malgrado agora o bando nem se preocupe com isso, tão debilitada a moça fica. Ela caminha até o beiral de uma ponte e se joga no rio, ressurgindo, não das cinzas, como uma fênix, mas das águas, pronta para ir à forra.

Como se pode inferir, o componente de violência em “Doce Vingança” recrudesce muito no segundo ato, a vendeta da protagonista, finalmente. Os métodos por que Jennifer opta são simplesmente impublicáveis. Do ponto de vista narrativo, é necessário sacar de boa dose de licença poética para digerir que ela tenha conseguido arquitetar seu plano, nos detalhes mais inimagináveis, em tão pouco tempo, dispondo de todas os recursos para isso (cordas, alicate, tesoura…). A questão ética se impõe mais uma vez, por maior que tenha sido o ultraje que lhe perpetraram. Ao escolher se vingar, Jennifer se transforma numa criatura tão monstruosa quanto seus estupradores, quiçá até mais, já que ela termina viva e eles, não — além do fato de Matthew ser mentalmente incapaz. Eu não tenho vocação alguma para juiz, não sei julgar quem quer que seja e cada um sabe de si (ou deveria saber). O que se pode afirmar com toda a certeza sobre o filme é algo pueril de tão elementar: barbárie gera barbárie e ninguém ali tem razão. Opiniões muito diferentes dessa servem de motivo bastante razoável para que eu, respeitosamente, prefira me afastar de certas pessoas.

Emulando o terror de H.P. Lovecraft (1890-1937), Edgar Allan Poe (1809-1849) e Stephen King, com o ultrarrealismo que só cinema tem mesmo, “Doce Vingança” propõe uma análise da hipocrisia, chegando na fonte de que brotam desvios de comportamento como machismo, misoginia e toda sorte de manifestações fanáticas. Que não serão estancados com tiros de escopeta, frise-se.


Filme: Doce Vingança
Direção: Steven R. Monroe
Ano: 2010
Gênero: Suspense/Terror
Nota: 8/10