Filme da Netflix é um retrato silenciosamente devastador do que significa ser mulher num mundo de homens

Filme da Netflix é um retrato silenciosamente devastador do que significa ser mulher num mundo de homens

Henrik Ibsen (1828-1906) talvez tenha sido o primeiro autor a se debruçar sobre a questão do desejo de autonomia da mulher na sociedade em que vivia. Com “Casa de Bonecas”, de 1879, o dramaturgo denunciou o total desprezo pela condição feminina já nos estertores do século 19, numa Noruega sempre tida por civilizada, moderna, exemplo a ser seguido por povos além da Escandinávia.

My Happy Family”, “Chemi Bednieri Ojakhi”, no original, pinta um cenário em nada semelhante ao de “Casa de Bonecas”, tirante o argumento central da opressão insondável a que uma mulher pode se sujeitar ao longo da vida. A Geórgia, país do Leste Europeu e uma das ex-Republicas Socialistas Soviéticas até 26 de dezembro de 1991, evidentemente não se compara à Noruega — tem suas próprias belezas e suas próprias tragédias — e não se está mais em 1879, mas em 2017. Por essa razão, o retrato que o casal de diretores Nana Ekvtimishvili e Simon Groß pretendem fazer do anseio da mulher por liberdade num já maduro terceiro milênio se mostra um tanto mais chocante.

Manana, a protagonista, vivida com irretocável denodo por Ia Shugliashvili, parece cultivar um silêncio atávico, sem saber muito bem por onde começar a fim de dizer o que precisa. Sua vida tem sido uma sucessão de lugares-comuns que agora, aos 52 anos recém-completados, ferem-na no que ainda possui de intrinsecamente seu, uma vez que nem sua própria vida é de fato sua. Manana concluíra o ensino médio aos 17 anos, gozara a chance de se graduar na universidade, tornara-se professora de literatura, casara-se, tivera filhos, tudo como se obedecesse a um roteiro. E exatamente por isso chegara à meia-idade tão frustrada, tão infeliz.

A personagem central de “My Happy Family” não é uma dondoca a quem nada falta, como Nora, a protagonista da peça de Ibsen, mas curiosamente nesse ponto existe algo que se impõe entre elas e as conecta. O pouco dinheiro não chega a se constituir um problema e malgrado Soso (Merab Ninidze), o marido, seja um sujeito acomodado, sem ofício definido, Manana não estaria melhor se casada com um homem bem-sucedido. De repente, essa professora cinquentona, ainda bonita, mas principiando a ceder ao passar dos anos, se dera conta de que não tinha sequer um guarda-roupa para chamar de seu. Isso, sim, é que é prisão — mas uma prisão da qual pode escapar, ainda que sofrendo e impingindo alguns traumas, antes que não reste mais nada a se fazer.

A questão da protagonista é encarada à luz da reprovação certa da família, mesmo que ela já saiba que eles nunca lhe darão o beneplácito para tentar ter a vida de que se julga merecedora. Manana, claro, vai embora de qualquer modo, escutando os desaforos da mãe, Lamara, papel de Berta Khapava — outro destaque do elenco —, a grande antagonista da trama, o que prova que mulheres não necessariamente se unem em assuntos comuns ao gênero, tampouco quando envolvem pessoas que a vida se esmerou em separar, ainda que o amor entre elas continue a existir. Permanecem no apartamento Lamara, Soso, Nino e Lasha, filhos dos dois, além de Vakho, marido de Nino, e Otar, pai de Manana, todos inconformados com a saída dela, que em maior ou menor medida, consideram como um abandono, uma traição.

Manana deixa a casa, mas abandonar aquela vida, superar os conflitos que se lhe infundiam a partir daquele cotidiano, da convivência com aquelas pessoas, não é assim tão simples. Ela continua umbilicalmente ligada à família, submissa a seus desmandos, tanto que sai correndo sempre que chamada a solucionar algum enrosco deles. Na verdade, Lamara, Soso, Nino, Lasha e Otar, nessa ordem, não conseguem admitir que ela, pela primeira vez, tenha tomado as rédeas da própria vida nas mãos. Numa última cartada, uma reunião, uma espécie de conselho de sábios, quer persuadir e mesmo constranger Manana a voltar, mas ela não dá o braço a torcer. Numa sequência primorosamente bem dirigida, denota-se um laivo de indignação da protagonista que, sempre contida, não se permite continuar com sua vida dos outros, ao passo que também não seja seu intuito magoar as pessoas que, por incrível que possa parecer, amam-na e são igualmente por ela amadas. Essa é a tônica da personagem, caminhar entre essas duas vertentes, escorregando ora para um, ora para outro lado, aspecto realçado com a precisão necessária graças à interpretação grandiosa de Shugliashvili.

Na metade do filme, o reencontro da professora com uma colega da época do ensino médio, hoje feirante, enquanto faz compras dá um pouco mais de dinamismo à trama, também por levar a narrativa para outro cenário que não o do apartamento dos pais de Manana e o lugar para o qual a protagonista se muda. Manana é convidada por ela a comparecer à festa em comemoração pelos 35 anos da diplomação da turma na qual estudaram, em que mais uma vez se depara com as tantas mensagens que a vida quer lhe transmitir. Essa colega, envergonhada por talvez não ter ido tão longe quanto os demais — quanto a própria Manana, inclusive —, lhe pede que ela não comente nada a respeito de seu ofício com os outros. Cada um ali se encarregou de viver suas dores ao longo dos anos, mas numa conversa em que a professora e algumas velhas amigas falam de como foram felizes (ou não), Manana se encontra novamente encurralada pelo destino, acuada por causa de uma revelação que vem à tona sem o devido cuidado. O que se assiste a seguir, o refúgio de Manana no banheiro, chorando escondido, e depois, tocando violão e cantando, como se imolasse seu último quinhão de inocência, é um dos registros mais poéticos do cinema contemporâneo. 

“My Happy Family” se desdobra no seu próprio ritmo, sem se importar em ser tachado de pouco coerente, demorado, previsível. O encontro entre Manana e o agora ex-marido, pelo menos na prática, já no desfecho do longa, dá a entender que a professora vai mesmo perseverar na sua nova vida, fazer dessa oportunidade de mudar tudo o que tivera até então o estímulo que lhe faltava quanto a ser verdadeiramente feliz, ou se empenhar como nunca para tanto. O filme de Nana Ekvtimishvili e Simon Groß alia um elenco de ponta a elementos técnicos, como a fotografia de Tudor Vladimir Panduru, a fim de dar vazão a todo o sentimento por trás de gestos tão sutis quanto o texto é vigoroso. “My Happy Family” ensina que, muitas vezes, para que os vínculos não se rompam de vez, é preciso algum distanciamento. Cada indivíduo tem, antes de nenhumas outras, suas próprias necessidades. Seja Manana ou Nora.