Entrevista com o diabo

Entrevista com o diabo

Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.
(Guimarães Rosa)

“Deus é foda…”, foi a primeira declaração impressionante que ouvi do coisa ruim, nem bem abrimos a entrevista. Ali, no caso, a tosca adjetivação utilizada pelo entrevistado vinha carregada de ambiguidade, muito embora eu captasse do tinhoso um sentido plenamente negativo, a significar, pois: estorvo, percalço, pedra no sapato (acaso sapatos existissem no universo para ungulados como aquele) ou pedra no caminho (se é que o algum dia o capeta se dignou em ler Drummond).

Entrevistar diabos, ao contrário do que se supõe, não é uma tarefa das mais simples, mesmo aos lunáticos mais criativos. Cruzar por torturadores contumazes, pastores pedófilos, pais abusadores, corruptos abusados, senadores mafiosos, taxistas estupradores, ditadores assassinos, matricidas cínicos, homens-bomba até que é mole, afinal, existem aos montes aí pelos estrumes do planeta. Quero ver mesmo é peitar o chefe da matilha, o cara a cara com o maligno.

Pois, então, fui designado por um editor possuído a encontrar-me com o cramulhão a fim de obter, se não um passaporte para o quinto dos infernos, uma entrevista exclusiva nunca antes concedida na história deste país. Municiado com réstias de alho, discos do Padre Marcelo, um exorcista aposentado pelo INSS, Al Pacino, o advogado do diabo e o diabo de um advogado, encarei o tenebroso satanás nas ruínas de Auschwitz-Birkenau, antigo campo de extermínio de gente na Polônia.

Para início de conversa, todos imaginam que o pai do mal tenha aparência dantesca, asquerosa, voz gutural e aroma sulfuroso. Aquele não. Apesar de equilibrar-se sobre duas patas, sendo cada uma delas com quatro dedos, o arrenegado possuía semblante humanizado, a pele alva, bem cuidada, uma vistosa cabeleira besuntada com brilhantina. O das trevas, pasmem, cheirava a alfazema, balbuciava com voz encantadora e cantou, à capela, o sucesso “Sympathy for the devil”, dos Stones.

Antes de fugir da cruz, enquanto chupava manga, o cão concedeu-me a seguinte entrevista:

Eu  — Afinal de contas, em essência, o homem nasce bom ou mau?

Diacho — Se dependesse de mim, a humanidade nunca mais nasceria de novo, de tal sorte que esse dilema jamais vos assombraria. Mas, Deus é foda, ele não me ouve, e faz tudo sempre a sua imagem e semelhança. Parece até um daqueles ditadorezinhos militares que tencionam se perpetuarem no poder, o que não deixa de fomentar em mim uma nesguinha de inveja.

Eu — Por que o bem sempre vence no final?

Pé-de-pato — É um mal necessário. É o que me move a acordar todos os dias de manhã, abrir as janelas do purgatório e dizer: Obrigado, Senhor, por mais um dia neste inferno!

Eu  — Para fins didáticos aos leitores neófitos, vamos fazer um pingue-pongue a respeito dos Sete Pecados Capitais? Topa? Então, lá vai: a gula…

Lúcifer — Assistir pobres diabos (ups!) comerem à exaustão o pão que eu mesmo amassei.

Eu — Luxúria…

O malino — Políticos safardanas fodendo o Brasil.

Eu — Avareza…

Demônio — Esconder propinas na cueca. Eu não faria pior.

Eu — Ira…

Belzebu — Iracema apedrejada no Irã. “Iracema, meu grande amor foi você” (cantarolando e batucando sobre uma desativada câmara de gás, cínico feito o diabo).

Eu — Soberba…

Satanás — Um deputado da bancada evangélica fuzilando John Lennon em nome do pai, do filho e do espírito santo.

Eu — Vaidade…

Sarnento — Assistir uma partida de futebol entre Yanomamis e Parintintins na Arena de Manaus após a Copa do Mundo. Se bem que os índios não têm culpa pela caixa preta do homem branco.

Eu — Preguiça…

Cão tinhoso — Um mamífero peludo trepado numa pilastra do Congresso Nacional numa sexta-feira pela manhã.