Você é uma pulga: desplugue-se

Você é uma pulga: desplugue-se

Trocadilho besta. Deu coceira? Ou será que em vez de pulga você é um polvo? O povo virou polvo. Outro trocadilho infame. Pegadinha maliciosa da nossa língua pra lá de linguaruda. Faça careta. Eu também estou fazendo. Verdade dói, mas tem que ser dita. Ou então verdade pica, sanguinolentamente.

Como no caso das pulgas, cuja única arma reside na “piqure” como diriam os franceses. As pulgas picam e isso é o fim da picada. Retomemos a definitiva afirmação, presente no título deste texto. Você é uma pulga afogada na parafernália tecnológica, que traz o universo da invisibilidade pessoal para a sua ínfima vida. Pulga, escaravelho, caruncho, cupim. Escolha qual personagem lhe convém.

Por outro lado, simultaneamente, você age como um polvo, detentor de dezenas de braços e ainda assim sem mãos a medir, diante da profusão de gadgets — aparelhinhos mega sofisticados despejados à sua volta pelo mundo digital. My god.

Enquanto pulga (alternando-se nesta versátil duplicidade de papéis) você sai pulando a torto e a direito entre a saraivada de novidades que caem no seu colo (e por acaso pulga tem colo?) Celular com quatro chips é massa. Google Glass, sinistro. Relógio de pulso com câmera, gravador e função telefone, uau. Novo console do PS4, yeap! Tv com comando de voz e smartphone idem. Mas acredite: este cenário não é o paraíso.

Já reparou como você vem encolhendo? Entrando em transe, êxtase, luxúria, ao se deparar com novidades em série, trazidas no dorso de alados cavalos cibernéticos, guiados por neurofadas vestidas de domesticadas neogueixas. As atuais e metálicas histórias de cinderela e seu séquito de avatares se reapresentam em trajes inéditos neste século 21. Cadê você, cadê você.

Que vengan los ciborgues

Algumas décadas atrás, tudo parecia estar sob seu incontestável e quase deificado controle. Desejos, relações, anseios pré-formatados, protótipos de querências. Relações tingidas de todas as cores, para além, inclusive, do espectro solar. Descerebramentos planejados. Hibridizações consentidas. Androidização gradual e irreversível.

Que vengan los ciborgues. Pulga. Microscópico inseto vampiresco, portador do complexo de ioiô entomológico. É você sim. E eu também não escapo desta praga — ao menos por ora — já que me assemelho aos humanos.

As tecnologias nos devoram por inteiro. Como enormes e gordas serpentes entretidas com suas pálidas, porém ainda sequiosas vítimas.

Você também é um polvo. Caiu na rede é mais que peixe. É um cefalópode, nome científico do bicho, para ser mais chique, conforme alertaria a dona biologia. Redes sociais trançadas com nós distintos. Intimidade consentida e escancarada. Twitter, Facebook, foursquare e uma enxurrada de neófitas interfaces. Privacidade, espelho meu, aonde escondeste meu rosto ateu? Cabeça esponjosa, visgo, olhos tortos e esverdeados encravados no topo do pretenso e gelatinoso crânio, do que antes, morfologicamente, atendia pelo nome de “meu rosto”.

Polvo. E o povo não ousa escapar das esfaimadas ventosas do frenético cenário ciber. Não há tentáculos suficientes para enroscar-se com tantos dispositivos-sereia, devices reluzentes, seduzindo a todos os curiosos com olhos de sal e corpo de algas oriundas de mares gelados.

Há algum tempo, nos deparamos com o smartphone mais rápido do planeta, os “phablets” — com tamanho intermediário entre um celular e um tablet — e tablets pequenos otimizados para vídeos e também para operar múltiplos aplicativos em redes 4G de telefonia móvel — exibidos dentre os principais destaques no Mobile World Congress, em Barcelona. É fato — as redes atualmente permitem que milhões de outros aparelhos, de cafeteiras a bicicletas, se tornem “inteligentes”.

Observe como isso ocorre: fabricante de chips Qualcomm, por exemplo, exibe uma casa conectada na qual um smartphone pode ser usado para ligar uma cafeteira, e os alto-falantes tocam um som quando você entra na sala, porque detectam o celular no seu bolso. Percebeu? Você sua casa e seus eletrodomésticos estão em pé de igualdade na sinérgica interação. Todos dominam e interagem com todos, na era da internet das coisas que exacerba estas novas conexões e intercâmbios.

Múltiplas esferas cibernéticas

Voltando ao ilustre “cefalópode”, outra vez na roupagem de um polvo, caro leitor, sua aderência às esferas cibernéticas é mais garantida que à dos pneus franceses. Mc Luhan certamente exultará, sobrevoando agora planetas distantes da pós-terráquea existência, entoando laconicamente à exaustão: os meios de comunicação são extensões do homem, tudo evanesceu. Você se perdeu em tudo que o circunda.

Fragmentos de memória esponjosa foram entregues a aplicativos cônscios de suas responsabilidades. Momentos de puro romantismo doados a fotos zipadas, guardadas para todo o sempre nas esfinges do HD de sua recém-adquirida máquina portátil.

Vale recordar, nos idos de 1997 o já plugado compositor e cantor baiano Gilberto Gil profetizou na música “Pela Internet”, o que seria o mundo cibernético hoje. À época, o acesso à web, iniciado entre nós em 1995, ensaiava seus incertos passos. Mas a canção concebida pelo artista preconizava na altura o advento de uma verdadeira revolução tecnológica.

“Criar meu web site/ Fazer minha home-page/ Com quantos gigabytes/ Se faz uma jangada/ Um barco que veleje.” Na atualidade, a sanha pelo escrutínio da privacidade dos internautas alastrou-se . Somos irrecorrivelmente transparentes e decodificáveis em quaisquer telas. Esconderijos apresentem-se a nós, os usuários conclamam.

Novas redes sociais também ventilam sua aterrissagem por aqui, como a do grupo Anonymus à qual você poderá se afiliar, mantendo, segundo ratificam os criadores, sua identidade preservada de hackers. Blindagem à vista. Droga. Neste exato instante não consigo enxergar você.

Por favor, peço-lhe humildemente que esclareça: aonde se meteu desta vez, criatura mobile, com essa mania de se introduzir no útero das tecnologias, hein?

Desplugue-se um pouco para eu ver você. É uma súplica que faço, seguida, porém, de um xingamento inevitável… Sua pulga!