Com uma paixão cega no coldre sou capaz de enfrentar o mundo

Com uma paixão cega no coldre sou capaz de enfrentar o mundo

Não tenho passado uns bons dias. E é muito provável que esta se saia como uma das crônicas mais entediantes que eu tenha escrito dos últimos tempos. Mesmo assim, eu os conclamo a não desistirem do texto. Afinal, amigo é amigo; filha da puta é filha da puta; senador da república é senador da república.

Acho que estou precisando de um choque de gestão nas minhas engrenagens mentais. Sacudidelas. Uma espécie de faxina interior. Assepsia. Guariba. O nome que prefiram. Ah… eu e essa velha mania de armazenar senões no porão da memória. Porão, que nada: calabouço.

Pois, eis que me pego sempre a remoer os fatos, procurando mesmices como quem chafurda nos lixos urbanos das megalópoles. Freeganismo, acumulação compulsiva de lembranças deterioradas, amargura da pura: qual rótulo me cairá melhor? Com tantas palavras descartáveis, por que ainda catar pensamentos nos containeres da mente?

Começarei assim este texto-análise que enorme paciência exigirá dos leitores. Primeira estação: eu pouco supunha, mas fora informado por um bom samaritano falador de verdades (ou seria um desmancha prazeres?) que um de meus funcionários mais antigos, ao se demitir para ingressar numa empresa concorrente que “pagaria mais”, declarou que, no fundo, no fundo, considerava-me uma pessoa muito fria, um homem seco, um sujeito praticamente tão insensível quanto uma samambaia num xaxim.

Não sei quanto a vocês, mas, certamente, não é aprazível a ninguém descobrir-se algo desamável. Durante os dez anos em que trabalhamos juntos, eu sequer desconfiava agir feito uma planta. Só fiquei da sabendo da analogia na hora da rescisão de contrato. Enquanto contava o dinheiro do acerto, o ex-funcionário de longa jornada finalmente confidenciou (a terceiros, diga-se), o quanto eu era um patrão impessoal e desinteressado nas mazelas alheias. Uau! Surpresa! Pensei que fosse mais animal que vegetal.

Segunda estação: repercutiu muito a recente e homérica passagem do ex-beatle Paul McCartney pela minha cidade, um evento impensável para um povo tão acostumado à draga sertanejo-universitária que transborda pelas encostas das rádios deste condado. Neste quesito, eu nem precisei da ajuda de universitários, de psicanalistas ou de ex-funcionários magoadinhos: do ponto de vista musical, a cada dia piora a minha intolerância aos modões onomatopéicos produzidos em escala industrial. Aqui confesso que pequei.

Li num jornal local um artigo redigido por um ilibado professor universitário que repercutia o show, detonando-o em vários sentidos. Que eu me lembre, poucas vezes na vida fui tão intempestivo nas minhas reações. Saquei do meu coldre enigmático palavras indóceis e disparei contra o texto do professor. Não contra o autor, pois sequer o conhecia.

A carnificina virtual foi grande. Houve uma saraivada de críticas ferozes (certa vez, já senti isto na pele, ao escrever um texto debochado a respeito do Santo Daime: os alucinados quiseram me esfolar). As notas de desagravo de outros leitores ao ex-beatle foram tão passionais que o editor do jornal interveio, publicando um texto-resposta para defender o professor.

No papel de olheiro daquela reação escandalosa em cadeia, o jornalista considerou que a legião de fãs de McCartney agira como fanáticos religiosos ao apedrejarem o texto opinativo daquele acadêmico como este se fora uma adúltera na praça (confesso que lancei, sim, as minhas tapiocangas virtuais). E não é que a carapuça serviu direitinho? A paixão é fanatismo, tenha ela cunho religioso, político, esportivo, cultural ou afetivo. Apesar de não amar nem um milímetro a menos a obra de Paul McCartney, naquela noite quase nem dormi.

Quase nem dormi também entretido em “discutir a relação” com a minha esposa. Era a terceira estação. Amável, amada, cuidadosa, a minha companheira quis porque quis saber o que vinha acontecendo comigo nos últimos tempos, por que eu andava tão estranho, tão calado, tão distante, tão frio (de novo, o indisfarçável incômodo ao ser comparado a uma pedra de gelo). Palavras dela: a suspeita máxima é que haveria uma “outra” (ou outras: nunca se sabe do que um homem é capaz).

É muito provável que eu não a tenha convencido com os meus parcos recursos de argumentação, mas, eu me sentia bem ao estar com ela, sim, obrigado, eu lamentava muito, não havia ninguém, não havia outras, não se preocupasse comigo, dormisse bem, boa noite. Então passei boa parte da madrugada martelando versos da canção “Gita” (Raul Seixas / Paulo Coelho) na cachola: “Às vezes você me pergunta por que é que eu sou tão calado, não falo de amor quase nada, nem fico sorrindo ao teu lado…”.

Portanto, caros, num curto período de tempo, fui acuado, no mínimo, três vezes. Entretanto, posso me gabar por não ser teimoso. Esta pecha eu não carrego. Ao som do vento norte que balançava as folhas do coqueiro no meu quintal, eu parti para uma famigerada, porém fundamental, imersão autocrítica: como as pessoas veem a mim?

Além de concluir que precisava, logo aos primeiros raios de sol da manhã, podar algumas folhas secas que pendiam daquele coqueiro indolente, eu constatei que, de fato, eu estava tendendo mais para fotossíntese do que para metamorfose. Pau que nasce torto?

Alguma coisa devia mesmo estar fora da ordem. Por exemplo: todos aqueles com quem conversei a respeito de Paul McCartney disseram ter chorado durante o show em Goiânia. E eu, que amo muito tudo aquilo, apesar da avalanche emocional interior, não vazei uma lágrima sequer. Nem mesmo quando Macca tocou “Blackbird” no seu violão elétrico com cordas invertidas.

Mas, gente, eu lhes asseguro: não sou samambaia; sou pássaro preto.