As melhores coisas a gente pode fazer na chuva

As melhores coisas a gente pode fazer na chuva

Tem gente que quer se casar. Tem gente que quer comprar uma bicicleta. Tem gente que quer trocar de carro. Tem gente que quer dar uma volta ao mundo. Tem gente que viaja demais na maionese. Tem gente que quer perder uns quilos. Tem gente que acha a vida muito pesada. Tem gente que quer botar umas tetas novas. Tem gente que quer um cargo comissionado. Tem gente que quer fazer um check-up. Tem gente que quer pular de uma ponte. Tem gente que quer ter um filho. Tem gente que não fala mais com os pais. Tem gente que só quer a herança. Tem gente que rasga dinheiro. Tem gente que fala rasgado. Tem gente que perdeu a esperança. Tem gente querendo ver Deus. Tem gente que quer voltar a enxergar. Tem gente que quer quitar um carnê. Tem gente que quer casa própria. Tem gente que quer sumir do mapa. Tem gente que quer comida. Tem gente que quer ser comida. Tem gente que me faz perder o apetite. Tem gente que quer se sentir amada. Tem gente que, de tanto amar, até me comove.

Eu tenho lá os meus quereres e não são muitos. No momento, eu só quero que volte a chover. Imediatamente. A estiagem está broca. O ar parado. A cabeça a mil. Inadmissível que se lave a roupa suja nesse clima de deserto. Eu só quero que a água caia. Se não fosse tão tolo, correria nu pelo parque, banhando-me de céu. Aliás, foi na chuva que eu vivi grandes momentos.

Conheci uma gata e a fiz miar feito louca. Fizemos dois filhos quase ali mesmo no altar. Numa estradinha de terra, carreguei a mulher amada no guidão da bicicleta, as gotas de chuva caindo na cabeça, eu a ensopar a cueca. Quase sempre eu pensava que a vida era um filme, que eu me parecia bastante com o Paul Newman, embora os meus olhos tivessem — e ainda têm — a cor de um burro quando foge de um livro.

É preciso encarar a realidade. A vida não é um filme de western. Pior que não ler é cair na arapuca de um livro ruim. A simpática moça do tempo tem toda razão: a temperatura média no planeta é maior hoje do que quando o sangue fervia nas minhas veias, no auge da juventude. Por isso, as pessoas — até mesmo as mais antipáticas — esmeram-se agora em simpatias pra chuva chegar logo. Por exemplo: a falta de água nos mananciais da ética é tão grave que os corruptos de todos os escalões do Governo suspenderam temporariamente a lavagem de dinheiro. É assim mesmo: a seca nivela todos os homens por baixo, coloca-os na sua devida baia.

Na chuva, sou melhor que o cascalho, pareço até mais humano. Certa feita, durante um dilúvio, salvei um cardume de peixes da mais completa loucura. Chovia tanto naqueles dias que os bagrinhos chegaram a pensar que o dia do juízo final finalmente havia chegado e que, uma vez afogada a espécie humana (“Foda-se, humanidade! — comemorou uma garoupa ao saltar fora d’água), o mundo seria só deles: dos peixes, dos suicidas, das pedras, e das demais criaturas aquáticas.

Eu sei que é foda quando um amor termina e dá água. Mas, ninguém merece tanto calor assim, nem mesmo o demônio da sua boca. Foi na chuva, numa memorável partida de Cu de Boi (modalidade esportiva na qual dois atletas disputam a bola numa cancha, e um terceiro permanece parado tentando impedir que ela atravesse a baliza) em 1976, que um raio me acertou os cornos, matando um punhado de fantasia que eu carregava na minha cachola de menino. Eu jurava que a vida fosse só jogar bola, comer guloseimas e esporrar no lençol da cama enquanto dormia. Porra, aquilo foi um banho de água fria. Até nisso, a chuva me ensinava: que a vida era dura, mas que era preciso relevá-la à medida que os pingos encharcavam o gramado. “Aproveita o momento, moleque”, o trovão berrava, de vez em quando, lá do alto, a pedido de Deus, enquanto eu me lambrecava na lama com os amigos, a única lama da qual me orgulho.

Não posso crer que a bonita moça do tempo tenha, de feto, engravidado. Ela parecia tão disposta nos meus delírios do horário nobre. Agora, aparece elegante e esguia na tela da TV, usando um vestidinho verde colado no corpo, a revelar a silhueta de uma jiboia que acabou de devorar uma paca, prova contumaz de que fora deliberadamente fecundada por outro reprodutor que não eu. Ora, eu não faria sexo com uma mulher grávida de uma paca. De jeito nenhum. Isso não. Seria loucura demais. Bestialismo.

A mente humana não apenas mente a todo instante, como é terreno fértil às fantasias, faça chuva ou faça sol. A metida musa meteorológica conta que, infelizmente, amanhã não choverá em parte alguma do país, quem dirá na minha horta, e que esse ano está sendo considerado pelos capetas e especialistas em melodramas o ano mais quente do planeta, desde o surgimento de Marilyn Monroe nas telas do cinema.

Decepcionado por não ter reciprocidade de afeto com a vistosa correspondente de São Pedro na Terra, triste em saber que amanhã não choverá nada mais além de denúncias de bandalheiras no Governo, eu decidi escrever um tributo à chuva, para que ela venha logo refrescar, não apenas o meu corpo, mas o meu ânimo. Afinal, conforme eu frisei desde o início, eu vivi os meus melhores momentos na chuva: esqueci quem eu era, nadei a favor da correnteza, lavei a alma, mas nem assim matei a sede de querer ser menino pra sempre. É uma pena que a estiagem pegue a gente de jeito e não largue nem chovendo.