Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com o meu trator

Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com o meu trator

Não se dizia outra coisa em Shitland: o prefeito surtou. Sob seu ponto de vista e dos baba-ovos, ele fazia uma gestão supimpa, histórica, revolucionária, a melhor de toda a vida. Nem a sua mãe concordava. A velhota ficou nervosa quando o pimpolho — por medidas de contenção de gastos e também porque não gostava da poesia de Manuel Bandeira — ordenou a demissão sumária de milhares de vagalumes nos postes de luz, deixando a cidade às escuras, numa clara retaliação aos namorados.

A última medida do prefeito passou das medidas e esquentava as discussões nos cafés, igrejinhas e prostíbulos do condado: tendo em vista que jamais lera uma linha sequer da obra de José Mauro dos Vasconcelos, ele mandou arrancar dezenas de pés-de-laranja-lima das calçadas da principal avenida da cidade, a fim de liberar o trânsito para os caralhos-de-asas nos quais o povão ia montado, de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. A cambada de vereadores da base governista aplaudiu os tratores e votou pela troca imediata do nome do logradouro, que passaria a se chamar Rua da Amargura, ao invés de Alameda Esperança.

Um poeta que passava pelo local na hora da degola das laranjeiras parou, pediu, implorou moço não faça isso não, tenha dó das plantinhas, ao que foi advertido para cascar fora dali, para ir rimar os seus versinhos noutra freguesia, ou seria intimado pela matilha de cães de aluguel alugados pela atual gestão para combater os elevados índices de raiva humana.

Todas as arvorezinhas seriam arrancadas automaticamente, sem açúcar e sem afeto, com jeitinho, pela pá mecânica, tiradas com raiz e tudo, e replantadas em locais mais apropriados, de preferência onde não houvesse gente por perto — garantiam os nada ternos subalternos vestindo ternos. Porém, soube-se mais tarde que todas elas secaram, definharam, morreram de desgosto e de saudade do monóxido de carbono.

Ora, os incomodados que fossem plantar bananeiras no asfalto, bradou o prefeito do alto de uma patrola. Era preciso alargar as vias públicas, modernizá-las, incrementar a mobilidade urbana, dar vazão ao trânsito, seguir a cartilha de globalização do caos no planeta. As ruas andavam lotadas de veículos, era bem verdade. Afinal, nos últimos anos, por causa de incentivos do Desgoverno Federal que baixara os níveis do IPI e da probidade administrativa, a venda de automóveis quintuplicara, obtivera recordes indecentes, ano após ano, e havia uma alvissareira previsão estatal de que, muito em breve, seria possível enfiar um carro no rabo de cada cidadão.

Solteiro, ex-seminarista, ex-pracinha, ex-comungado, ex-médium — a maioria dos espíritos simplesmente recusava-se a qualquer tipo de manifestação naquele corpo — era filiado ao Partido Conservador, muito embora, no auge da sua juventude, tivesse fumado orégano com extraterrestres nas imediações de um baixo meretrício em Alto Paraíso, e militado no Partido da Foice e do Martelo, época da vida em que ele sonhava acima da média, escrevia sonetos para comer as namoradas, e tinha sangue correndo nas veias, não aquela gosma de groselha que hoje jazia fria e talhada dentro do seu peito. Os tempos eram outros: a foice, agora, ele usava para podar os adversários políticos; o martelo, para bater na mesa e gritar aqui mando eu.

Então foi colecionando uma série de medidas impopulares que deixaram aquela gente com uma vontade danada de se mudar, de mala e cuia, para Pasárgada. Ao invés de tampar, mandou batizar e dar nomes aos buracos das ruas. Proibiu que as pessoas adoecessem aos finais de semana e feriados. Serenatas, só em horário comercial. Incutiu nas cabeças dos alunos que merenda escolar engordava. Era proibido, não apenas fumar, mas assoviar e chupar cana nas repartições públicas. Que ninguém mais produzisse lixo, pois os caminhões se cansaram do serviço sujo. Ordenou ao pessoal da jardinagem que plantassem edifícios sem flor nas áreas desafetadas. Deu um número a cada morador de rua. Investiu em segurança pública ao decretar toque de recolher após a novela das dez. Contratou mais de vinte vacas curraleiras para podar os lotes baldios. Demitiu a chuva. Tirou os sorrisos do caminho. Enfim, foi deixando a cidade de Shitland mais moderna e triste a cada dia.