Saiu pra fazer um aborto e nunca mais voltou

Saiu pra fazer um aborto e nunca mais voltou

Era viciado em tabaco. Saiu pra comprar cigarros, mas voltou em tempo de acompanhar o batizado da neta. Achava o fim da picada aquilo tudo, do Congresso Nacional ter proibido as pessoas de fumarem em recintos públicos como aquela igreja, e de judiarem da pobre bebezinha ao imergirem-na numa bacia cheia de vinho, que o padreco com gel nos cabelos insistia era o sangue do cordeiro. O caldo vermelho e rutilante escorrendo na pele alva da menina deu nele uma vontade danada de sorver uma bela taça de Cabernet Sauvignon resfriado.

Tava quente feito o inferno naquele coliseu cristão em que demônios eram devorados a todo instante com simples estalares de dedos. Mal encerrou a cerimônia, cascou para o toalete a fim de lavar as mãos, o rosto, a nuca, de se refrescar, enfim. Andava cheio de manias. Por último, desenvolvera o estranho hábito de enxaguar as mãos trocentas vezes ao dia, mesmo sem necessidade, de forma extremada, compulsiva, quase esquizofrênica. No fundo — ele desconhecia — há certos tipos de sujeira que não saem com sabão, de jeito nenhum, por mais que se lave.

Sentia-se preocupado demais com aquela história do sumiço da noviça rebelde, que a imprensa escrita, falada e psicografada alardeava há mais de uma semana. Assim como placentas entravam pelo cano, cabeças rolariam. Ah, sim, rolariam. Viver era uma prova: não tinha tanta certeza assim da lealdade da sua equipe de caninanas. Afinal, associara-se a um bando de gente sem visgo no olhar, porém, uma trupe extremamente carismática, hábil, competente, corajosa e decidida no que tangia aos afazeres de burlar a lei vigente. Era uma turma renegada, é verdade, mas, comprometida com a causa.

E bota disposição para atender a clientela. Durante o planejamento estratégico na garagem, optaram pelo atendimento exclusivo às castas mais favorecidas, às filhas e esposas das famílias abastadas da região metropolitana, um pessoal culto, educado, branco, medroso, mas de ótimo trato. Corria a fama de que eram discretos, ligeiros, bons de serviço. A despeito da Constituição, das autoridades sanitárias, da polícia e das religiões, havia fila na porta, uma lista de espera para os que não podiam esperar nem mais um dia sequer.

Os subalternos, seus colaboradores na oficina de fetos eram: uma assistente social que a tudo assistia sem dar um pio (era ela quem atendia ao telefone, mandava trancar a porta e oferecia cafezinho); dois policiais militares expulsos da corporação, que estavam ali para acolher com chaves-de-braço os acompanhantes mais exaltados; uma auxiliar de enfermagem obesa, extrovertida — exímia ladra de bebês que mal acabaram de sair do forno uterino — que cumprira seis anos de detenção num intestino grosso de segurança máxima; um ex-médico cujo registro no CRM fora caçado com cedilha por C.R.M (iniciais de um incógnito caçador de recompensas pelos crimes de avental branco); um saco de sanguessugas com mandíbulas de titânio; uma trinca de ventosas que tinham pulmões de atleta; um senhor aposentado boa-praça-toda-vida que ainda trabalhava para sobreviver (ele era o humilde porteiro da oficina e realmente não sabia de nada, a não ser que naquele prédio funcionava uma idônea clínica de estética, na qual idôneos profissionais da saúde injetavam substâncias de origem idônea nos rostos de pacientes idôneas para que elas voltassem a sorrir — a coisa nem sempre funcionava, e muitas saiam dali com aquela cara de Mona Lisa).

Às gentes, ele — o diretor — se apresentava como um cínico geral que se especializara em acupuntura com agulhas de crochê, o que não deixava de soar como um escárnio, um deboche entre os raros comensais (amigos, conhecidos e familiares) que sabiam do seu velado ofício em espetar embriões dopados com gás hilariante. Quisera essa história fosse pra rir, e não, chorar. No máximo, provocará raiva e indignação nos leitores menos atentos.

Pressionado pelo escândalo da jovem noviça prenhe, filha caçula de uma tradicional família local, que sumira do mapa após ter sido atendida na sua fábrica de desfazer embriões, o velho doutor fraquejava, sofria calado, aturdido pela real possibilidade de ser preso na formidável manhã de domingo. Estava tão amargurado que pensou até em se confessar com aquele padre bonito e tranquilo, mas preferiu fumar mais um cigarro, fato que provocou a advertência do coroinha, pois, embora ele se sentisse no mundo da lua, ainda estava dentro de um território sagrado.

Da moça, encontraram apenas a Kombi carbonizada e um prestobarba. O velho doutor ardia de medo e desamparo. Os jornais estamparam fotos da fachada. Uma moça com tarja preta nos olhos e voz de robô deu uma entrevista exclusiva ao Jornal Sensacional, cujos detalhes minuciosos jogaram a audiência lá pra cima e a autoestima dos telespectadores lá pra baixo. Coisas do show business.

Na boa: o doutor nunca se sentira tão injustiçado. Embora utilizasse sempre luvas, brocas, pinças e alicates, ele cria piamente que fazia justiça com as próprias mãos, ao proporcionar, a despeito da legislação, um local limpo e seguro — caro e secreto, é bem verdade — em que mulheres, casais, famílias ricas e desesperadas podiam aportar para resolverem os seus problemas (era sempre essa conversa: todos queriam resolver, com diligência, algum problema). Estava tão abilolado com o risco de ser preso e desmascarado que prometeu a si mesmo, caso escapasse daquela enrascada, abrir uma filial mais modesta, popular, na periferia da cidade, onde pudesse atender caritativamente mulheres pobres, aquele tipo de gente que ainda se valia de métodos caseiros obsoletos e perigosos (como injetar nas entranhas bosta de porco utilizando canudinhos de refrigerante) para encerrarem uma gravidez indesejada.

Nunca desejou tanto um copo de uísque. Nunca acreditou tanto em Deus quanto naquele dia. Porém, de nada adiantou rezar. Mal desceu as escadarias da portentosa Igreja de Nossa Senhora das Aparências, foi abordado por policiais à paisana — muito bem vestidos, diga-se de passagem — que o conduziram aos altares da Polícia Federal.