Adeus, leitores. Este é meu último texto fofinho

Adeus, leitores. Este é meu último texto fofinho

Eu também gosto da poesia de Mario Quintana, mas tenho jogado minhas bigornas aos afogados. 90% do que escrevo sou eu ali, escarrado e triste; 10% é só pausa pra descanso. Não sou santo, mas confesso não me sentir muito à vontade mentindo na pauta, na cama, no confessionário, numa batida policial, numa entrevista, nas redes sociais. Pediram-me encarecidamente que eu escrevesse uns textos mais leves, altruístas, daqueles que falam de crianças brincando no playground, de virgens passeando sem malícia com seus esvoaçantes vestidos de cambraia num campo de centeio, de homens apaixonados escrevendo poemas de amor para as amadas.

Ora, mesmo ciente que a molecada de hoje migrou para os tabletes; que as virgens, os ornitorrincos, o mico-leões dourados e a honestidade estão em acelerada extinção; e que homem nenhum do planeta trocaria sexo, internet e dinheiro pela poesia, não sou de atirar luas na pedra, de desprezar os conselhos e as ameaças. A fim de não comprometer digestões, vou partir para textos bem mais otimistas, vou investir naqueles famigerados 10% que sobraram e que tanto contribuem para a paz de espírito dos porcos. Vocês vão ver só.

Pelo que me disseram num pesadelo, ninguém mais suporta a minha bipolaridade literária, aquele estilo vacilatório, um vai-e-vem estético que mais parece sacanagem, o fetiche esdrúxulo de bater e assoprar depois, um escritor indeciso que passeia instável pela comicidade (que nem sempre faz rir; aliás, há legiões de indignados se manifestando, pleiteando critérios mais apurados dos editores responsáveis por essa joça) e uma crueza tão honesta que assusta, incomoda, desanima.

Exceto eu mesmo, ninguém gosta de se sentir desanimado, e eu até entendo. Nem todos são viciados em melancolia. Mas não ando tão criativo assim quanto vocês imaginam. De tal forma que hoje não vai rolar aquela catarse, aquele transporte pelas raias da imaginação até um cenário estupendo que fará surgir dentro de mim — senão um sono do cacete — uma inspiração farsante que fará as mulheres suspirarem fundo e os seus companheiros me condenarem à cova rasa.

Quase ninguém sabe: eu moro numa metrópole com mais de dois milhões de habitantes e algumas centenas de assaltantes em franca atividade, de tal forma que não está nada fácil encontrar uma locação segura para sublimar, tamanho o caos urbano em que vivemos. Tem neguinho latindo no quintal pra economizar demônio. Pensei, portanto, em me sentar à margem de um riozinho pedregoso e chorar — como se fosse um mago rico — entrar em alfa, curtir a mata ciliar, o barulhinho gostoso da água lavando as pedras vinte e quatro horas por dia, mas não foi nada fácil.

Nas últimas décadas, os prefeitos deste inferno que muitos chamam cidade mandaram encanar os cursos d’água para que pudéssemos despejar ali dentro toneladas de merda, lixo industrial e carniça humana produzida por exímios grupos de extermínio. Mesmo sendo um descrente sem fronteiras, escolhi um local que tinha o peculiar nome de Rio das Almas, e pirei com um sofá vermelho meia-vida encravado no banco de areia (com a estiagem, os rios andam tão rasos como o sangue que rasteja em minhas veias), e que ficaria perfeito na minha sala de estar.

Era um domingo nervoso, ensolarado, e eu nutria a sincera esperança de me deparar com marmanjos molhando minhocas n’água, crianças serelepes nadando, brincando de troca-troca nos barrancos sombreados, esposas animadas a reclamarem dos seus maridos. Mesmo imbuído em escrever um texto meigo, ao estilo franciscano, que fosse minimamente tolerado por todos, confesso que encontrei sérios empecilhos íntimos e exteriores, como os carrapatos daquele lugar que, de bucólico, só mesmo a trinca de garças deprimidas, esquálidas, cancerosas, a se empanturrarem com tilápias suicidas que pelejavam no lodaçal pestilento.

Fui sentar na relva, mas tive que me contentar com um toco de uma feiosa, tortuosa árvore do cerrado que alguém meteu a motosserra pra virar carvão. Eu esperava, ingenuamente, ficar extasiado com os passarinhos a pipiuarem de galho em galho. Galhos não havia, e os únicos passarinhos disponíveis no pedaço, além de não cantarem patavina nenhuma, eram uma esforçada equipe de urubus malandros a cutucarem as tripas de um cavalo terminal.

Sorriam: estou quase terminando. As coisas não corriam bem. Aquele rio não corria bem. Este texto — pra ser sincero — não corre nada, nada bem. Desconfio até que aquele curso d’água jamais chegue ao mar, e que esta crônica jamais encontre um fim. Mais que correr, que escorrer, ele, o rio, prosseguia do jeito que dava, resignado, fedorento, pois não passava de um caudaloso esgoto a céu aberto a desfilar modorrento, falido, como um coágulo na sarjeta. Ainda que as minhocas fizessem questão de saltarem n’água para cumprirem o seu digníssimo papel social de iscas, eu não seria cruel o bastante para atirá-las naquele escandaloso lamaçal.

Embora a violência singrasse frouxa por aquelas bandas, a incrementar o pujante mercado de balas e defuntos, saquei da mochila o notebook, respirei fundo (aliás, quase desmaiei intoxicado com uma fumaça preta que brotava de uma montanha de pneus com cachorro morto, providenciada por algum de energúmeno), busquei inspiração num esforçado, bicudo e desavisado joão-de-barro que catava partículas de esgoto no barranco pensando que fosse argila. Fui interrompido no meu lastimável retiro literário pelo ribombar de foguetes. Seria aniversário da cidade, a inauguração de uma praça, um candidato a Governador atrapalhando o trânsito, pedindo votos, beijando crianças catarrentas, fazendo “selfie” até com o cramunhão?

Quisera fosse só a algazarra de um político populista. Alheios a minha inexplicável presença naquele cenário tão devastado e pútrido, uns carinhas com olhar noiado fuzilaram um sujeito que tombou rutilante no ressequido capinzal ribeirinho. Confesso que senti medo pra cacete. Mas, o sangue que jorrava do peito do sujeito criava um matiz curioso à luz do dia — resplandecentemente rubro — que fazia lembrar uma fonte luminosa ejaculando numa noite de natal. A carnificina domingueira não foi nada calculada, nada tão alvissareira, nada tão altruísta, nada tão positiva, nada tão cabível e tão poética que eu pudesse descrever nessa história sem que os seus estômagos revirassem. Eu juro que tentei, leitores. Já basta?