Deixaram a porta aberta e Deus fugiu da igreja

Deixaram a porta aberta e Deus fugiu da igreja

A regra é rubra; os dogmas, claros. Abre aspas:  “É vedado aos crentes solteiros desta igreja, não somente se afeiçoarem aos crentes de outras agremiações religiosas que também concorrem a Pimenta-do-Reino dos Céus, assim como contrair com os mesmos chato, bubão ou matrimônio.

É vedado aos casais fazerem amor sobre o harmônio antes do culto, principalmente com as luzes dos castiçais acesas. Se a música e a fantasia libertam, com certeza deve ser pecado.

Cada um no seu quadrado: é vedado às fiéis casadas — sob alegação contribuírem com seus amos para a amortização das despesas domiciliares — trabalharem fora do lar, a não ser para varrerem o terreiro, catarem o coco do cachorro ou dependurarem as roupas no varal. Vão rezar, ó submissas!

Essa vocês vão ter que engolir: é vedado comer a hóstia antes da missa, conquanto ela seja nada mais nada menos que uma abençoada porção de farinha de rosca prensada numa máquina de fazer doidos sob a forma de moedas de cinquenta centavos com a logomarca do Vaticano.

É vedado ao médico, mesmo que ele seja cubano, mesmo investido do sacerdotal labor hipocrático, injetar quéti-chupe nas veias de um crente anêmico moribundo com um pé na cova e o outro no coágulo de sangue. Dizem as escrituras: Não dirigirás uma só palavra a Deus após tomar uma taça de Sangue de Boi.

Quem escreveu eu confesso que não sei quem fui, mas está explícito em letras garrafais num dos infinitos provérbios de Pronomes: é vedado às mulheres depilarem as axilas, as virilhas, o monte de Vênus ou quaisquer outros acidentes geográficos do corpo humano que induzam os varões a flutuarem no mundo da lua, a cobiçarem fazer sexo por mero divertimento, descomprometidos com as sacrossantas finalidades procriadoras de um coito.

É vedado aos crentes desta igreja fazerem o quadradinho de oito sob o pretexto de comemorarem feriados, mortes e aniversários, além de curtirem sozinhos à lapidação com pedras renais de um escriba ateu em praça pública.

É vedado colocar em dúvida o conteúdo dessas escrituras, sob pena de enlouquecer de razão”. Fecha aspas.

Com o apoio de prepostos aqui na Terra, Deus arrebanhou mais uma ovelha para o seu rebanho, e eu perdi um amigo. Vejam vocês, carneirada: era um dia quente de verão nos cafundós de Buraco Azul, quando eu me deparei com o sujeito num ponto de ônibus. Seus sovacos estavam ensopados de suor, e ele tagarelava mais que uma mulher naqueles dias, ao ponto de espumar pelos cantos da boca de tanto salvar o mundo, a pregar vergalhões inúteis no couro duro dos cidadãos que só queriam chegar logo em casa, pregar a bunda no sofá, e acompanharem pela TV o inédito beijo gay entre um ator sem talento e um dramaturgo efeminado da novela das oito. A corrida pela audiência não economiza sensacionalismo: espera-se para os próximos capítulos o incrível parto de um transexual dentro de um aquário.

Dizem que as amizades da infância são as mais longevas. Fiquei tão feliz em reencontrar aquele cara que não hesitei em interromper a sua palestra no deserto, e convidá-lo para um café com palavras numa lanchonete ali perto. Ele declinou, disse que também estava naqueles dias, ou seja, jejuando e cumprindo a inoxidável missão de capturar ovelhas desgarradas, evangelizar transeuntes nas paradas de ônibus e OVNI. Com os olhos vidrados de tanta fé (até porque ele tinha uma bola de gude enorme enfiada num dos cavos orbitários, pois um olho secara de tanto chorar), ele fez uma rápida retrospectiva da sua vida, do quanto teve uma infância cruel regada a maus tratos.

Desde o dia em que ameaçou furar as tripas do próprio pai com a faquinha da manteigueira, porquanto o sujeito não parava de esbofetear a esposa na cara, quase tudo mudou: ele, as irmãos abusadas e a mãe agredida enxotaram o bêbado valentão de casa e se converteram a uma das religiões mais conservadoras e reacionárias que se tem notícia nesse hospício. Antes de tomarmos o último porre de “laranja mecânica” da nossa juventude (um coquetel feito com água de bateria e Crush), meu amigo me chamou de lagartixa, me prensou contra a parede e perguntou: “Você não ouviu o chamado?”. Juro que fiz de tudo para ouvir o tal chamado, até porque amava aquele sujeito como a um irmão.

Então, nunca mais nos vimos, até aquela tarde modorrenta em Buraco Azul. Como diria Dona Genoveta, a passadeira: os anos e as malas de roupas se passaram. Acho que meu coração ficou velho antes do tempo. Será? Que nada. Bobagem. Hoje, aos 48 anos, meu miocárdio está tão usado quanto o fígado e a vesícula, só que mais amargo, apesar de não bombear a bile.

O cérebro, não. Dependendo do sujeito, o cérebro pode ser o primeiro órgão do corpo humano perfeito a se tornar imperfeito, a definhar, pois ele é o sítio onde a amargura cria limo, o cárcere ideal cuja complexa rede de teias, traças e sinapses resulta, ora em euforia, ora em desterro, com uma evidente tendência à tragédia, como é o meu caso. Então é só isso: de certo modo, os meus neurônios se amarram numa melancolia. Ai, como dói perder um amigo.