Trocando em miúdos, estamos fodidos

Trocando em miúdos, estamos fodidos

Eu li as notícias de hoje. O dólar tinha subido mais uma vez. Uma menina que descia o morro com uma mochila escolar nas costas tinha tomado um tiro de fuzil. Nas costas. “Escola do crime”, explicaram as autoridades investidas de estultice e falta de sensibilidade. Estamparam nas capas das revistas a foto do xerife socando, no ar, os fragmentos dos miolos de um bandido. Na legendas, ele explicava: “Guerra é guerra”. Lembrei-me de Jack Kennedy, em Dallas, 1963, vestida com o seu vestidinho rosa, andando de quatro sobre o capô da limusine presidencial. Encostei-me numa pilastra para anular o efeito danoso da vertigem. Apesar dos olhos turvos, eu vi nas fotos sensacionalistas dos principais jornais do país que o sangue do povo tinha ficado preto. Plano de cargos e salários. Gratificação por meliante abatido. Condecorações para quem acertasse na cabeça.

Correspondentes exclusivos enviados para Nárnia e para o escambau do norte informavam que o céu sobre a floresta amazônica, de uma maneira particularmente artificial e mórbida, perdia também os seus matizes originais, ao par que vertia fabulosos cogumelos de fumaça. Na praça, enquanto folheava os diários, eu ouvi quando um pedinte pediu um minutinho só da minha atenção, por favor, para profetizar que, em breve, muito em breve, os pombos deixariam de dar milho aos homens. Tremi nas bases. Aquilo fazia sentido. Ali perto, num salão de beleza, dondocas de sovacos lisos e cheirosos comentavam como andava feia a situação de vida no planeta, por causa de uma assustadora epidemia de suicídios que assolava a humanidade, em qualquer idioma. Estarrecimento geral. Mais uma unha que quebrava. Mais uma ruga que preocupava. Mais uma ponte que pulava de um sujeito.

Um dia na vida, colei o ouvido no radinho e escutei quando o locutor disfêmico reconheceu que os Beatles tinham sido mais famosos do que Jesus Cristo, mas, por mera vingança celestial, estavam morrendo de velhos. Por meio da internet, uma leva crescente de jovens autoconfiantes que estavam habituados a queimar livros e discos defendia causas arcaicas que um dia pertenceram aos seus pais e avós. Era deprimente deparar com moços que discursavam como se tivessem 100 anos de idade.

Eu assisti à televisão hoje. As porras das árvores ardiam em chamas. Tinha minério valioso no subsolo, de sobra, para encher o cu de meio-mundo. Mas, nem tudo estava perdido. A moça do tempo nunca esteve mais adorável ao prever que, em breve, choveria na minha horta. Pouco importava. Como disse o poeta Maiakóvski, a anatomia tinha ficado louca. Durante um pronunciamento oficial, em rede nacional, um sujeito, que era a cara do Carl Sagan de ressaca, decretou que poesia era coisa de viado, sacou da cintura um saco de bosta e jogou todo o conteúdo no ventilador. Intestinava-se rancor e ódio como se os corações fossem feitos de tripas. Eu pesquisei num dicionário para burros que o verbo “intestinar” significava “entranhar, interiorizar”. Ultimamente, recrudesciam mais danos interiores do que os corpos aparentavam suportar.

Eu li na coluna de um prédio renomado, num panfleto anônimo que tinha sido pregado com gosma por um soldado desconhecido, que homem nenhum na face da terra tinha vencido uma guerra sequer. Durante um surto de pânico, escutei, numa estação de trem para Marte, que uma matilha de neonazistas tinha socado um gay até a morte, embaixo do maior vão suspenso da América Latina.

Eu li as notícias ladinas de hoje. Não tinham nada de alvissareiras. A não ser, os anúncios classificados, escritos com letras garrafais, nos quais as garotas de programa declaravam fazer sexo com qualquer coisa que andasse sobre duas pernas e que pesasse mais de 40 quilos, por pura opção, só porque gostavam mesmo da coisa, até o fim e sem frescuras. Na verdade, no frigir dos ovos, trocando em miúdos, estávamos todos fodidos.   

P.S. — Com o devido amor e reconhecimento, este texto é dedicado aos Beatles, a maior banda de todos os tempos, e foi escrito sob a inspiração de “A day in life”, de Lennon & McCartney, uma das canções que constam no álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, considerado pela crítica musical especializada um marco na história da música pop em todos os tempos.