O amor quando acontece, a gente esquece logo que sofreu um dia

O amor quando acontece, a gente esquece logo que sofreu um dia

Tirou a bala da coxa dela e sentiu que aquele estremecimento interior devia, sim, ser o tal amor à primeira vista. Pensem numa mulher bonita. Imaginem agora que ela flutue, que possua um par de pernas tão gigantescas e acolhedoras que façam com que qualquer sujeito se sinta na obrigação de derrubá-las, como se fosse um avião penetrando nas Torres Gêmeas. Ah… Certa vez, namorei uma trinca de gêmeas siamesas que miavam no quintal dos meus delírios como gatas embriagadas de amor. Uma gozava em falsete, outra fazia a segunda voz, e a terceira não dava um só piu, um ui que fosse: odiava-me.

A inveja é um ser rastejante que infecta qualquer tipo de ambiente, vocês sabem, desde o mais desorganizado prostíbulo até o portentoso Vaticano, onde quer que haja gente, embora, muitos seres boçais tratem putas como se gente não fossem, e cardeais como se fossem uns putas seres humanos, com um senso humanitário acima da média. Certa feita, numa lanchonete eclesiástica ao lado de um inferninho, tomei média requentada e comi uma porção de hóstias diet (o pão daqueles que possuem fé malemolente), acompanhado de um amigo padre que me confidenciou que amava outro padre que amava uma noviça que amava um ateu que por pura falta de fé não amava o Senhor que amava todo mundo, portanto, tudo terminaria bem, toda aquela estória de amai-vos uns aos outros e coisa e tal. Ele tinha o rosto risonho-progressista do Papa Chico, o bonachão mais famoso do planeta, customizado na camiseta com a qual desfilava confiante pelas ruas e becos gays do centro da cidade pregando o evangelho e pegando novos contatos para as novenas de sábado à noite.

Então, ao saber que aquele médico plantonista, que era um ás na arte de romper vísceras e musculaturas em busca de chumbo, se enamorara por uma das centenas de pacientes que procuravam aquele hospício de clínicos, cirurgiões e microrganismos, uma beldade com pernas irrepreensíveis até mesmo ao mais exigente ortopedista efeminado do Sistema Único de Doenças, um gaiato invejoso tratou de denunciar o sujeito à famigerada Comissão de Meia Ética daquele antro obtuso denominado pronto-socorro. No fundo, no fundo, todos — exceto mulheres heterossexuais e homens de jalecos brancos que preferiam fazer sexo com homens, possuíssem eles jalecos ou não — queriam também ter arrebatado o coração da jovem de coxas colossais, incidentalmente atingida por uma bala perdida na Rua da Amargura. Tanto assim que, dali para o tribunal do Bom Conselho de Classe foi um pulo só.

Não bastasse pegarem no pé daquela leva de médiuns cubanos recém-chegados ao país, que tinham incorporado como ninguém o espírito da coisa em matéria de saúde coletiva naquele reduto de desmotivados fardados de branco, mesmo que contratados a preço de banana pelo Ministério das Doenças, e que mais pareciam senadores da república leprosos, políticos mafiosos desmascarados por jornalistas do Noticiário das Oito, tamanho o preconceito e a repulsa que sofriam dos seus colegas nativos, médicos igualmente fodidos e mal pagos, a perseguidora e invejosa Comissão de Meia Ética processou o catador de balas nas entranhas, fazendo com que ele fosse submetido a uma saraivada de acusações, deboches e admoestações por parte da Corte do Bom Conselho de Classe, um grupelho viciado composto por discípulos hipocráticos portadores cavanhaques mal aparados, má índole e muita hipocrisia. Depois de humilharem aquele réu apaixonado, o qual fora involuntariamente flechado por um cupido moribundo que aguardava na fila das vacinas daquele hospital sucateado, ofereceram ao mesmo duas alternativas.

Alternativa número um: que ele rompesse imediatamente o affair antiético com aquela potranca manca de uma perna, para se ver livre da acusação de amor à primeira vista, que muitos acusavam de assédio sexual durante o sacrossanto exercício da profissão, devendo, portanto, como pena mínima, pagar um sapo para os médiuns cubanos ao traduzir para qualquer língua morta o calhamaço de artigos, normas, dogmas, orientações e proibições que constituíam o Código de Meia Ética, a fim de doutrinar aquela cambuia de castristas prescritores de sementes de jerimum torradas na frigideira para tratar lombrigas solitárias e outras pragas coletivas.

Alternativa número dois: se insistisse em manter acesa a chama daquele amor proibido, seria condenado pelos togados de chapéu gozado a queimar o seu diploma juntamente com pilhas e mais pilhas de atestados médicos falsificados apreendidos nos últimos meses, além de um sem número de discos de vinil do cantor Roberto, só porque ele passara a comer carne vermelha, no átrio do prédio velho do Conselho, à vista dos velhos conselheiros, com o apoio de um bombeiro novíssimo e bem dotado, devidamente treinado para apagar as más impressões e o fogo das secretárias daquela autarquia de mentirinha.

Esta cansativa, confusa e prolixa crônica-folhetim encaminha-se para um fim: ao extrair um projétil enxerido dos interiores sanguinolentos de uma coxa exemplar, aquele plantonista encontrara finalmente o amor. Até então, considerava-se um ser insensível, um neurótico com um bisturi na mão, pois amava tão somente a Medicina e as canções da banda Nirvana, que ele ouvia no volume máximo dentro do centro cirúrgico, enquanto operava apêndices, vesículas e tripas de trapos humanos, os quais eram depositados paulatinamente à porta daquele hospital de coisas muito urgentes, como amar, por exemplo.

Berrando como um touro inconformado, ele ruminava por aquela criatura uma enorme saudade. Então, sucumbindo ao que o coração ditava, o médico especialista em balas, belas e bulas, o qual muitos invejosos maldosamente chamavam de “Don Juan da Emergência”, bateu à porta da amada, usando os nós dos dedos da mão direita, a mão segura de um exímio cirurgião, um par de mãos macias e pouco compreendidas, cujas falanges eram recobertas por moitinhas de pelos grossos, bastante masculinos. Mãos perfeitas, com uma pegada e tanto, era o que dizia a amada. Para que esta estória tivesse um final feliz, a beldade manquitola abriu as pernas da sua casa para que ele entrasse, então ele nunca mais saiu.

P.S — o título desta crônica é um verso da canção “Quando o amor acontece”, de João Bosco.