A vida era simples, feliz e divertida dentro da Kombi

A vida era simples, feliz e divertida dentro da Kombi

Escrevo histórias reais e inventadas. Prefiro as últimas. Esta aqui aconteceu no duro, embora, de tão excêntrica, poderá parecer um embuste. Creiam: sucedeu tal e qual eu vou relatar, sem tirar nem por. Meados dos anos 1970. Partimos de Kombi para Salvador: meus pais e quatro filhos; dentre eles, este escriba. Mil e setecentos quilômetros de estradão do centro-oeste brasileiro até o litoral. Era chão que não acabava mais. Férias típicas de uma típica família da classe média que só viajava de avião se vendesse um dos rins.

Na ida, pegamos estradas pavimentadas de Goiânia até Salvador. Meu pai sempre foi um sujeito financeiramente comedido. Nunca gostou de ser rotulado de pão-duro, embora seja um deles, com todo louvor. Portanto, a ideia era tocar direto pra Bahia sem fazer interrupções, pausas e pousos em hotéis ao longo da estrada. Paradinhas para tirar água do joelho, só durante o abastecimento da velha Kombi. Crianças são espevitadas. Esperta, para controlar o furor da prole, mamãe munia-nos com bolachas, guloseimas e uma panela cheia de farofa-de-frango que fomos devorando com refrigerante quente durante a jornada.

Se pintasse aquela vontadezinha de fazer xixi, papai não parava o carro nem a pau e tínhamos que nos virar com uma lata de leite em pó vazia, improvisando-a como penico. Para os meninos ficava fácil acertar o alvo com as torneirinhas. Para minha irmã, a logística era mais complexa. A mando de mamãe, os meninos precisavam que ser cavalheiros, virar de costas e fechar bem os olhinhos, enquanto a menina assentava no buraco da lata num impressionante exercício de equilibrismo. Aliviadas as bexigas, mamãe simplesmente abria a janela da Kombi e despejava a urina ao longo da estrada, sob uma salva de palmas e gargalhadas de todos. Não me lembro como fazíamos com o “número 2”. Provavelmente, papai se via obrigado a recuar no propósito e estacionar no acostamento para que recorrêssemos às moitas do caminho.

Meu velho levava a sério o compromisso de economizar os parcos recursos financeiros. Durante a viagem, os banhos aconteciam em deploráveis toaletes dos postos de gasolina. Mamãe sentia asco das instalações e exigia que não nos banhássemos sem calçar chinelos de borracha, aqueles que não soltavam as tiras nem fodendo. Fobia materna. Medo de micróbios. Não me recordo quantos dias durou a nossa viagem. Contudo, lembro-me perfeitamente de não termos sido agraciados com confortáveis camas de hotel. Durante os pernoites, depois de nos empanturrar com algum tipo de rango a preços populares, papai aparecia com uma pilha de jornais no sovaco e explicava minuciosamente como é que deveríamos pregá-los nas janelas da Kombi, a fim de manter o mínimo de privacidade para a família. Sim, dormíamos dentro da Kombi. Sim, nosso hotel era a Kombi.

Nessa época, em matéria de entrosamento, papai e mamãe faziam uma bela dupla. Às vezes, o amor acaba. Então, anos mais tarde, vieram a se separar. São coisas que acontecem, não me queixo. Não sei faziam sexo dentro da Kombi, depois que a gente dormia. Criança tem sono pesado, vocês sabem. Devem ter feito. Eu, no lugar deles, teria feito, com toda certeza, de ladinho, rapidinho, na surdina. Naquela época, a orla de Salvador ainda era relativamente despoluída, de tal forma que curtimos a praia à nossa maneira: gente deslumbrada do interior do país, uma cambada de simplórios que nunca tinha visto o mar. Sim, experimentamos a água para conferir se era mesmo salgada. Sim, levamos areia da praia dentro de um vidro de azeitonas vazio como recordação da nossa primeira vez numa praia.

Aliás, o retorno foi uma verdadeira odisseia, uma aventura extraordinária e, hoje, hilariante. Ao invés de retornar pelas mesmas rodovias, papai tomou a pior decisão possível e optou em tocar pelo interior da Bahia, a fim de encurtarmos o trajeto de volta em cerca de cem quilômetros. Ocorre que, por causa da equivocada estratégia, teríamos que enfrentar — e enfrentamos; Deus sabe como fizemos isso — seiscentos quilômetros de estrada de terra. Imaginem vocês, uma família com quatro crianças miúdas viajando dentro de uma Kombi sem ar condicionado, sob um calor infernal e nuvens de poeira. Lembro-me de atravessarmos pontes sobre rios secos. Acho que mamãe temia que não saíssemos vivos daquela viagem, pois, além de bater boca com o meu velho, suplicou que rezássemos o Pai Nosso e a Ave Maria inúmeras vezes.

O trânsito naquela região era irrisório. Dirigia-se por quilômetros sem cruzar por outro automóvel. Cidades e postos de gasolina eram raridades. Vivíamos o medo recorrente de uma pane seca. Com o calor dantesco, o abafamento, o pânico e os solavancos vieram também o mal-estar e a náusea. A conveniente lata de leite em pó acabou se prestando também de recipiente para vômitos e cuspe. Para mamãe o processo funcionava diferente. Ela abria a janela da Kombi, espichava o pescoço para fora e golfava até amolecer, sem que papai desacelerasse.

O motor esquentou, quase pifou. Acho que foi a droga do filtro de ar sufocado de tanta poeira. Apesar do medo de virarmos comida para os carcarás, chegamos sãos e salvos em Brasília, onde a Kombi foi devidamente descarregada e asseada num lava-jato. A meninada tomou banho de mangueira ali mesmo no passeio público. Mais tarde, todos aliviados e calmos, papai reapareceu com picolés, docinhos e os tradicionais jornais embaixo do braço. Dormimos felizes o sono dos justos em pleno Plano Piloto.

Deitado no banco da frente, ouvi papai comentar que tinha muita vontade de juntar uma grana para se desfazer da Kombi e comprar um Chevrolet Caravan, da cor vinho, igualzinho aquele da foto da capa do “Correio Braziliense”. Meses mais tarde, papai capotou a memorável Kombi em Goiânia. Escapou ileso. Então, vendeu o carro e comprou o seu tão sonhado Caravan GM, dentro do qual partimos para outras risíveis aventuras em família, que um dia hei de lhes contar, tudo direitinho, tintim por tintim, sem tirar nem por.