A carnificina do tempo contra todo aquele que ri e chora

A carnificina do tempo contra todo aquele que ri e chora

Pedra, poeira, pó, invejo-vos. Tempo, odeio-te. Corpo, dileta morada dos meus pensamentos arredios, amo-te. Alma, por desconhecer-te de forma abissal e, suponho, definitiva, desprezo-te como desprezo todo tipo de dor, ainda que aquela proveniente do fenomenal suplício que despeja entre gosmas íntimas os homens nesse mundo, por meio dos canos nada silenciosos de uma mulher, típica, subestimada criatura com quem se aprende a sofrer com altivez e dignidade. Inconformado, parti, parto, sempre.

Tragicômico berro sobre uma colina de palavras. Colho os frutos brocados da própria ignorância, um a um, eu sei, dia a dia, ao sol, desde os mais lânguidos raios das manhãs. Minha sina é equanimemente malfadada àquela do poeta português, um prolixo mártir lusitano desesperançado pelo nada ser. Mudanças irrisórias acumulam-se na minha mente, por mais que eu leia livros, que eu me inspire em poemas ou que eu me refugie sob o manto experiente dos anciões da minha terra. Meus pobres velhos desterrados. Nem sempre acontece, mas, eles, homens e mulheres, sujeitos que nada esperam receber em troca do tempo, senão lembranças a cada dia mais fugidias e um bocado de massacre físico-moral, mantêm aceso em mim a disposição e o dever de pelejar contra os dilemas existenciais com a primitiva probidade dos fortes.

Por falar em luz, sinto-me tão desolado e triste quanto uma tarde nebulosa em Amsterdã, com o seu céu cinzento, melancólico, salpicado de aves lúgubres. Mesmo aplicando jabs no queixo das flores do seu canteiro, como se fosse um colibri, meu velho pai vai à lona pela enésima vez, numa guerra lenta e silenciosa contra as doenças do tempo. Há mais silêncio que o necessário dentro de casa, pois, presume-se, através de minuciosos e intrincados exames médicos, que um levante de incontáveis células amotinadas, egoístas, interesseiras e, por que não dizer, suicidas, conspira dentro do seu organismo fragilizado pela idade. Por que não somos como os corpos celestes? Não, não creio na morte das estrelas. Aliás, como vários, sequer compreendo a vida.

Ele dança. Ele lê. Adora se requebrar no salão e ler livros espíritas. Sinto que o seu modo de enxergar as coisas é bem melhor do que o meu. Daqui, aturdido, introspectivo como “O Pensador de Rodin”, vislumbro veias túrgidas e honestas a me espiarem dos seus braços macilentos, aquele antigo par de punhos que um dia me carregou com indisfarçável alegria, por onde quer que ele fosse, para que eu fosse apresentado a outrem: “Eis aqui o sangue de meu sangue”. Ah… Precisa-se de doadores de migalhas-de-fé. Tanta incerteza me dá sede. Abro uma garrafa. Tomo um gole. Sem brio, inebrio-me afogado em sentimentos superlativos.

Pode ser que haja pior masmorra que ter os pensamentos vívidos aprisionados dentro de corpos combalidos. Não sei dizer. Não me recordo de ter lido nada mais promissor a respeito de como envelhecer sem perder a ternura. Há que se conformar, que se endurecer contra o tempo, esse magistral, indelével carrasco da carnificina contra todo aquele que ri e chora. Ao verem passar os homens pela estrada da vida, as pedras do caminho tão somente observam e rolam livres, aliviadas, silentes, vitoriosas, para todo o sempre poeira e pó.