Era uma vez o amor

Era uma vez o amor

Era uma vez o amor, de norte a sul, de leste a oeste. Fosse num reino distante, fosse na tabacaria do outro lado da rua, de que falou Fernando Pessoa, um sentimento indomável danou a juntar pessoas em casais, duplas, triângulos amorosos e outros arranjos geométricos difíceis de se explicar e, muitas vezes, confidenciais. Sempre que dava, o amor era perfeito, unia e enfeitiçava a maioria dos homens e mulheres por ele afetados, a ponto de dois amantes, equivocadamente, se julgarem como um único ser. Vejam só que insensatez. Por mais que os poetas de todas as lavras discordassem, dois corpos jamais ocupavam o mesmo lugar no espaço. Não custou muito, a ciência, concisa e arrazoada como um parto, tratou de desmentir a assertiva de que dois podiam ser um.

Havia também o natural definhamento, a falência moral, a capitulação do amor e a consequente libertação das mentes e dos corpos da clausura amorosa. À duras penas, soube-se com o tempo que os amores-que-duravam-para-sempre também deterioravam como as folhas no outono e as chuvas no verão, geralmente, abatidos por uma inanição invisível que pouca gente notava, antevia, compreendia e aceitava. O desamor, por sua vez, nunca careceu de aceitação. Sem que ninguém imaginasse, a miséria de um amor extinto libertava os amantes das coleiras invisíveis para novas experimentações ou, simplesmente, para uma espécie de inércia, de ressaca, de rebordosa, de desilusão quase sempre passageira, regada a vinho e a canções cortantes, pois, ninguém nesse mundo conseguia ficar imune às armadilhas de um sentimento tão inescrupuloso e lépido como o amor.

Entre baforadas de Jeronimo’s e talagadas de Chafee, Maureen ouvia e não ouvia o meu Pequeno Ensaio a Respeito do Amor Doentio, que tinha empacado logo nos dois primeiros parágrafos. Ela guardava um semblante deplorável. Era nítido que não estava com saco para teorias intangíveis. Parecia esgotada física e mentalmente. Era certo que precisava de ajuda. Há cerca de cinco anos, ela tinha se mudado de mala-e-cuia para a casa dos pais: Jon-Jon, 93; Angie, 87. O destino fora cruel com eles. O casal, que convivia há mais de 65 anos, ficou demente, cada qual a seu tempo, mas, praticamente juntos, numa miserável coincidência que revirou o estômago cotidiano da família de patas para o ar. Graves lapsos de memória, olhares paralíticos, tiques nervosos, torrentes salivares, esfíncteres incompetentes, circos de alucinação, crises de agressividade, coisas do gênero.

Nervosa, Maureen gritou com a garçonete, pobre garçonete, que tinha pedido o cappuccino sem chantilly e sem canela, e não aquela porcaria intragável que serviram na nossa mesa. Trocaram o produto com celeridade e medo. Ela me contou que o seu mais recente dilema era decidir o que fazer com os rompantes sexuais do pai, que pareciam extintos até então. Nos últimos dias, o velho vinha acordando no meio da noite, e se esgueirando, e se esfregando, e acarinhando o corpo da antiga companheira em busca de penetrá-lo com uma muxiba varicosa que já não envergava mais de sangue.

A casa inteira acordava com o falatório cansativo do casal de aloprados. Caí na gargalhada, mas, Maureen não gostou nem um pouco da minha reação. Rir pra não chorar. Ela não sabia como lidar com a situação. A primeira providência que lhe ocorreu na cachola foi coibir a libido do pai com alguma espécie de benzeção, de simpatia popular, de artimanha religiosa, de receitas caseiras com chá anti-verga-tesa, de antídoto porreta, de contra-hormônio que fosse batata para aplacar o fogo gonadal paterno, de dopante da farmacopeia amazônica. Passou a se levantar de madrugada para intervir nas investidas do pai e pacificar os entreveros. Perdeu as contas das vezes em que flagrou Jon-Jon em pé, no meio do quarto, nu da cintura para baixo, a genitália murcha, os olhinhos revirados, os lençóis revirados e empapados de sêmen. Dei ela a minha palavra de que pesquisaria a respeito. Terminamos o café, despedimo-nos e cada qual seguiu o seu caminho matutando sobre os dilemas; os meus, certamente, bem mais brandos do que os dela.

Cheguei em casa extenuado. Julguei que precisava tomar um belo Cuspe gelado e ouvir tiros de Winchester. Então, assisti novamente ao filme “Era Uma Vez No Oeste”, de Sergio Leone, um dos meus westerns preferidos. Eu achava o meu avô parecido pra cacete com o Henry Fonda. No final do filme, um diálogo entre Cheyenne (Jason Robards) e Jill McBain (a belíssima Claudia Cardinale) me tocou profundamente. Estancados numa janela, enquanto miravam o mutirão de operários construindo um trecho da estrada de ferro, Cheyenne comentou, como quem fizesse uma súplica: “ — Você devia levar água lá fora para eles beberem. Você não imagina como um homem se sente feliz ao ver uma mulher como você. Só de olhar. E, se algum deles tocar em você, finja que não foi nada…”.

Achei aquilo comovente. Ali estava a beleza da mulher: enaltecida, glorificada, santificada, levada ao patamar mais extremo. Pensei nos pais da Maureen, nos ai-ai de Jon-Jon, nos ui-ui de Angie. Domado pelos constrangedores e irremediáveis delírios da demência senil, Jon-Jon experimentava, depois de longo inverno hibernado, a virilidade de outrora, sentindo pela companheira a mesma atração da época em que eram jovens, saudáveis e fogosos, como os personagens de Sergio Leone no filme.

Invadido por um misto de melancolia e mau humor, abri mais uma garrafa de Cuspe, decidido em me embebedar. Sei que Maureen não aprovaria, mas, cá entre nós, por mais que as noites se fizessem barulhentas e agitadas dentro daquele lar, eu deixaria, sim, com toda certeza, o velho Jon-Jon gozar o seu insano resto de vida em paz. Literalmente. Em nome dos velhos tempos.

Ilustração: Jack Vettriano