A esperança num futuro melhor é fuzilada todo santo dia,  mas, ela nunca morre

A esperança num futuro melhor é fuzilada todo santo dia, mas, ela nunca morre

Não conheço Marielle Franco. Nunca tinha ouvido falar da vereadora que foi emboscada e morta a tiros no Rio de Janeiro. Peço desculpas por isso. Preciso me desculpar por tantas coisas, que nem sei por onde começar. Talvez, devesse tentar um mea-culpa. Eu carecia regar com mais cuidado o amor no vaso profundo do meu peito, mas, não tenho feito isso. Sou um negligente contumaz e confesso. Tenho permitido que a poesia morra em mim, em face à iniquidade dos fatos, à míngua e sem reação. A inanição da lira vige em prol da desventurosa sagacidade da prosa. Não me orgulho nem um pouco disso. Um homem arrazoado é deveras infeliz.

Como eu já disse, quase nada sei a respeito da brasileira Marielle Franco. Para garantir a isenção literária aqui requerível, a fim de não dizimar a súbita inspiração que me invadiu nessa manhã calorenta e melancólica, não recorrerei à óbvia pesquisa biográfica da mesma. Mesmo sofrendo com a pecha de ex-poeta, recorrerei à pura imaginação para tentar descrevê-la nos meus devaneios e na minha falta de paz. É fato que que se tratava de uma mulher negra e bonita. Há inúmeras fotos dela estampadas onde quer que eu ponha os meus olhos. Parecia contar 30 e poucos anos. Estatura mediana, eu suponho. Talvez fosse casada com um homem branco, mas, acho isso pouco provável. Talvez tivesse um amante afro descendente. Talvez, quem sabe, tivesse uma queda por romances com mulheres. Afinal, muito se comenta nas resenhas a respeito do seu empenho em prol das causas feministas, raciais e das minorias. Talvez fosse, por que não, um transexual bem-sucedido, com exacerbada feminilidade, em conluio com os profissionais da área médica. Talvez cheirasse à alfazema e à paixão numa proporção acima da média. Talvez tivesse filhos ou gatos ou peixes coloridos no aquário. Talvez fosse infértil dos ovários e plantasse esperança em territórios áridos, inóspitos, onde nem mesmo a polícia se atrevesse a colocar os pés. Pobre do policial que não é bem quisto sequer na comunidade onde foi criado.

Peço desculpas pelo mau jeito, pelas conjecturas, pela pernóstica lucubração, pela leniência e preguiça, por não estudar mais, pela minha escarrada ignorância, por ainda gostar dos filmes de gângster e de western, pela predileção mórbida pela obra completa do diretor Quentin Tarantino. Quando menino, brincava de matar passarinhos e irmãos nos quintais da minha infância. Todo mundo pode ser cruel um dia, se quiser. Mesmo com um graveto que imita uma pistola na mão. Hoje, estamos todos vivos e saudáveis, embora, não livres, nem mesmo as aves que escaparam da minha má pontaria para morrer de velhice pousados em galhos de paineiras, pequizeiros, ipês e barrigudas. Escapar das pedras é fácil. Difícil mesmo é se desmamar da burrice inglória.

Antes das rajadas de execução sumária que, mais uma vez, colocaram a Cidade Maravilhosa sob as lupas do planeta, eu nunca tinha ouvido falar em Marielle Franco, pelo que me contaram, uma combativa militante política da esquerda. Talvez fosse destra, ao fazer o V da paz com os dedinhos médio e indicador esticados para cima. Suponho que cultivasse certa conta de vaidade, que tivesse as mãos ossudas, delicadas, calorosas da mulata brasileira. Talvez descesse o morro sambando, capitulando as balas perdidas com carisma, liderança e beleza. Talvez gostasse de futebol, torcesse pelo Flamengo (ela tinha cara de gente que torce pelo Flamengo), fosse ambidestra e chutasse com as duas pernas. Talvez chupasse sorvete de baunilha com os olhinhos fechados, uma graça de se ver. Talvez fosse míope, curtisse caipirinha e usasse óculos fundo-de-garrafa para enxergar além de seu tempo, para buscar aquela luz no fim do túnel de que tanto falam os desesperados que ainda acreditam num mundo melhor, num país onde haja mais justiça, menos corrupção e mais inclusão social.

Incluam-me fora dos abaixo-assinados. Estou tão mal que poderia escrever um poema. Talvez ela sorrisse. Talvez ela chorasse. Talvez já tivesse lido um de meus textos e até gostado. Talvez contasse piadas num típico boteco carioca. Talvez fosse impetuosa e rude ao defender suas ideias na tribuna da câmara municipal. Talvez pensasse em tomar uma ducha ou o governo Temer ou um chope gelado, e ouvir bossa nova com o seu amor quando chegasse em casa mais tarde, antes de ser tocaiada por um bando de facínoras invisíveis, numa cena deploravelmente bruta, como se o Rio fosse a Chicago dos anos 1920. Tudo isso para cair na miserável e vexatória estatística da violência no Brasil e se tornar uma lúgubre inspiração, uma impensável personagem de mais um dos meus textos tristes.