Contra todas as probabilidades, você não está voltando pra mim

Contra todas as probabilidades, você não está voltando pra mim

Alô? Como vai? Me desculpe por ligar tão tarde assim. É que eu bebi um pouco e, sempre que eu fico bêbado, a minha saudade aumenta; a insensatez, idem. Sei que eu não deveria, mas, eu só liguei pra dizer o quanto eu me culpo pelo fato do seu amor por mim ter feito as malas e partido, por mais que eu metesse nas janelas os cadeados dos gestos, as taramelas das palavras. Apesar do extenso corolário de verbetes, não aprendi ao certo como me expressar. Pela música que está tocando no fundo, você já deve ter suspeitado que estou de volta ao Devil’s Hole. Certos hábitos nunca mudam, certo? Botecos deploráveis. Doses generosas de Cuba Libre. Os intangíveis ideais socialistas. A cinefilia beirando um estado de torpor, de transtorno mental e de mania. O ronronar recorrente de óbvias obscenidades ao pé do ouvido. O ovo frito com gema mole. A morte do nosso Nicolai, dura de engolir. As conspirações do universo, em desfavor. O mocassim marrom sem as meias. Os sonhos ordinários de um pé-de-chinelo. A bartender me acende um Jeronimo’s. Ela leva uma tatuagem exuberante dos Stones cravada nas costas, aquela rubra língua debochada do Mick Jagger a lhe lamber a tez. Mesmo na penumbra daquele antro tão acolhedor, com cheiro de lavanda, gônadas e nicotina, nota-se que ela é uma mulher bonita. Posso comê-la com os olhos, sem pestanejar. Espero que não se importe mais com os meus típicos comentários machistas, afinal… Enfim, eu ainda não corrigi esse defeito do desejo. O deflúvio monumental de álcool na corrente sanguínea me prende às fraquezas e as potencializa. Penso que ela se parece muito com você: uma morena esguia, uma falsa magra com nacos de carnes caprichosamente esculpidas nas curvas pela enxurrada de fero-hormônios, as madeixas nigérrimas, lisas, compridas, ao estilo crina-de-potranca-indomável-que-cavalga-sobre-a-cama. Enquanto fatia rodelas de limão para um Cuspe Sour, a moça responde que a balada romântica da qual eu gostei e jurei escrever uma história chama-se “All for a reason”, antigo hit dos Alessi Brothers, um duo norte-americano que tinha feito um sucesso meteórico estrondoso nos anos 1970, mas que, infelizmente, hoje em dia, quase ninguém ouviu falar. Por causa do termo “infelizmente”, supus que a diva das biritas gostasse de boa música, pois, era jovem demais para ter curtido presencialmente a trilha sonora dos anos 1970, uma das melhores que se tem notícia, na minha humilde opinião. E por falar nisso, fui ouvir uma segunda opinião médica. Sabe aquele urologista com nome de planeta que você achava hilário? Pois é, ele olhou os meus exames e, enquanto cavoucava o meu rabo com o fura-bolo, atestou que eu tinha uma próstata de garoto. Brindamos eufóricos com o merlot californiano que eu tinha levado no sovaco. Saí do consultório leve, livre de suspeitas, orgulhoso das minhas vísceras reprodutivas. Eu ainda estou vivo, baby. Eu e o Phil Collins. Preciso ler a sua autobiografia. Você consegue ouvir uma canção dele tocando no fundo? Não sei se você sabe, mas, ele fez 2 horas ininterruptas de show no Décadence Stadium sentado numa cadeira. Eu tava lá, saca? O sujeito entrou no palco capengando, usando uma muleta. Fiquei tocado, comovido ao ver o meu ídolo ferido pelo tempo e pelo vício. Viva o Phil Collins! Viva o Genesis! Que se dane o Velho Testamento, poço de ódio e ignorância! Putz, acho que eu já bebi demais. Me deu uma vontade danada de chorar. Em condições normais de temperatura e pressão, eu não sou todo esse poço de sensibilidade. Vou desligar agora. Você precisa dormir. Foi ótimo falar essas coisas pra você. Espero que a porra dessa sua secretária eletrônica tenha anotado tudo direitinho, tintim por tintim. Fica com Deus, baby. Não se ria de mim. Sou ateu, mas, ainda acredito no amor. Eu só preciso mesmo é de uma muleta para seguir o meu caminho. Que seja a música, então. Adeus. Adeus.

(Para o amigo escritor Cristiano Deveras. Inspirado nos versos de “All for a reason”, dos Alessi Brothers e “Against all odds”, de Phil Collins)