Feliz é o homem que ri da própria desgraça

Feliz é o homem que ri da própria desgraça

Isso é o que se chama amor, levar a vida na flauta, encantando os ratos de si mesmo ao longo do caminho. A saudade rói. A vida dói e, dizem, parece demasiadamente curta quando se está velho, doente, na iminência da morte. Sorte de quem não sofre, de quem não pensa muito, dos que se apegam aos dogmas, às pseudociências, para se manter na superfície e não afogar nos turbilhões de pensamentos. Dois terços do planeta são recobertos por água; o resto é sangue e lágrimas. Não se confundam, isso não é geografia, é história.

Isso é o que se chama amor, uma alma jovem aprisionada num corpo envelhecido, um homem de sabor agridoce judiado pela doença e pelas lembranças do que era para ter sido, mas, não foi; mesmo assim, ele dança um rockabilly no meio do salão, como nos tempos antigos, ensopando a camisa, aturdindo os convidados, fazendo espocar os flashes, estorvando os garçons, preocupando-me profundamente; eu, um homem inseguro, volúvel, transbordando defeitos, que não entende quase nada sobre a vida e a morte. “Seu pai é um exemplo pra nós. Como é que ele ainda consegue, nessa idade, depois de tudo o que passou?”, alguém se admira, inebriado, bafejando, cuspindo perdigotos no meu rosto, julgando que o sujeito já tivesse se afeiçoado à lona. Um homem que eu amo requebra os compassos mais raquíticos da festa, mas, quem dança sou eu. Sem perceber, ele brilha e me ensina mais uma: meias-estrelas não existem; quem não for luz já se apagou faz tempo, foi riscado do céu, virou escuridão, pior que o pó.

Isso é o que se chama amor, um cordão humano fazendo escarcéu para abraçar, simbolicamente, um prédio que a prefeitura planeja derrubar. Uma maquete que custou cinquenta mil ao erário enfeita a antessala do gabinete do prefeito. A ideia do sujeito é soltar os tratores, seus cães de lata dura, sobre a memória viva da cidade e edificar um shopping center suntuoso, o maior da América Latina, 15% de propina, num local onde antes funcionava uma escola para jovens atores. A multidão do bairro pensa pequeno, e daí? Dá pra ser feliz com pouca coisa. Ninguém nas imediações anda acometido de megalomania, ninguém anda interessado na valorização venal dos imóveis ou em cravar mais um recorde no Guinness Book. A verdade é que o bairro e as pessoas envelheceram. Faz um calor dos diabos no meio da rua. Alguém abre uma Guinness gelada e propõe marchar, invadir o paço municipal. Com álcool na cabeça, as ideias ficam mais voláteis, legítimas e revolucionárias do que nunca. Nada mal meter fogo numa barricada de pneus, tombar uma viatura da polícia militar, temperar a luta com gás de pimenta, foder com uma militante fogosa ao velho estilo do sangue latino fervendo nas veias.

Isso é o que se chama amor, fazer piada quando tudo parece perdido. Um homem que ri da própria desgraça: eis uma personalidade ordinária digna dos louros, de receber uma justa homenagem ainda em vida, os apupos da turba, um foguetório, um discurso de vinte e tantas laudas, um busto de bronze cravado num jardim simplório com vinte e tantas rosas. Não se enganem: os pombos estão cagando e voando para a humanidade e as suas estátuas de mármore. Quisera ser mais um desses ratos-com-asas para sobrevoar a carniça dos meus sonhos. É sempre assim, um vício, um devaneio, um plano sem pé nem cabeça. Sonhar, uma praga pior do que uma infestação de pombos, enraíza as expectativas nos miolos da gente. Morre um sonho, brotam outros no lugar, um verdadeiro milagre.

Isso é o que se chama amor, tocar em frente e se deixar levar pelo som hipnótico de uma flauta, célere, entregue e confiante, feito um rato na direção de se afogar num rio.