“Um Completo Desconhecido” (2024), de James Mangold, é um acontecimento que, de tempos e tempos, sacode o meio cultural. É um filme (disponível no Disney Plus) sobre os primeiros anos de Bob Dylan, uma época e sobretudo um aprendizado. A história que ele reconstitui é a de um jovem que chega a Nova York, apenas com um violão na bagagem e um ouvido atento. Ao mergulhar na cidade, aquele rapaz de 20 anos descobre aos poucos uma voz própria, o que resulta em um novo sentido para a música, a forma de vida de juventude e o mundo.
A Nova York que o filme retrata é, antes de tudo, um sistema vivo. Nos cafés apertados do bairro Greenwich Village, os músicos, críticos, produtores e espectadores formam uma rede densa, onde tudo — canções, opiniões, contratos, amizades — circula, se mistura e se transforma no começo dos anos 1960. O filme é particularmente sensível ao sistema da música folk. O que se vê na tela é uma verdadeira esfera pública em miniatura, na qual onde arte e vida estão profundamente entrelaçadas.
É nesse ambiente que o jovem Dylan se forma. E não apenas como músico: é ali que ele aprende o sentido político da música, a carga histórica e social que cada canção pode carregar. Ao citar Woody Guthrie, Pete Seeger, Lead Belly, Hank Williams, o personagem Dylan não apenas reverencia os antigos mestres. Há um fio que ele conecta a tradição de resistência e as narrativas populares que falam de injustiça, esperança e transformação.
No contato com aquele ambiente nova-iorquino — a vida noturna fervilhante, as lojas de discos, os jornais combativos, as conversas estéticas e ideológicas —, Bob Dylan compreendeu que a música folk era, acima de tudo, um campo aberto para criação de significados. Nada passava despercebido naquele mundinho, incluindo até o famoso Chelsea Hotel, o lugar que abrigou por muitos anos a nata dos artistas da cidade. Assim, um entra e sai de pessoas invade as cenas de “Um Completo Desconhecido”.
O filme acerta ao mostrar que, ao mesmo tempo em que absorve a herança da música folk, Dylan já carrega dentro de si a inquietação dos que pressentem que o mundo está mudando. A passagem do tempo é uma imagem frequente em suas letras e canções. Ele percebeu que a tradição, por si só, já não bastava. O filme mostra as vozes de artistas como Johnny Cash, indicando a pista de um novo caminho: a eletrificação da música, a fusão da poesia popular com a força crua dos instrumentos amplificados.
A canção “Like a Rolling Stone” — certamente o ponto culminante do filme — é a materialização do salto rumo ao futuro. Com ela, Dylan rompe com o molde do folk tradicional, inaugura uma nova linguagem e, sem perder o conteúdo crítico da tradição, dá a ela uma nova forma, muito mais potente e expansiva. É a consolidação de uma música norte-americana capaz de rivalizar, em força e imaginação, com a chamada “Invasão Britânica” que dominava o mundo com Beatles, Rolling Stones e The Who.
Mas a transformação não se dá sem tensões. No filme, percebe-se que Dylan rompe com parte do sistema que o acolheu. Há resistências, acusações de traição, desconforto entre os guardiões da pureza folk, como o amigo Pete Seeger e Joan Baez (sua guia naqueles tempos). E é nessa tensão que “Um Completo Desconhecido” encontra sua grandeza: o filme compreende e expõe que a verdadeira fidelidade à tradição não está na mera repetição do passado, mas na coragem de transformá-lo.
A partir desse gesto, o filme antecipa os desdobramentos que moldariam o rock das décadas seguintes. A influência que Dylan teve sobre o grupo The Byrds, que eletrificariam suas composições; a parceria com The Band, liderada por Robbie Robertson, que daria nova profundidade e rusticidade à sua música; e a ponte para a psicodelia (a versão de Jimi Hendrix para “All long the watchtower”) e a nova sensibilidade que marcaria a virada dos anos 1970. Isso tudo está fora do filme e convida o espectador a fazer uma busca pessoal.
No fundo, “Um Completo Desconhecido” é o retrato de uma educação sentimental e, ao mesmo tempo, política. Em Nova York, Dylan não encontra apenas a música. Ele aprende que cantar é tomar um partido e é desenvolver uma visão de mundo. Cada verso, cada acorde, podem ser um gesto contra a indiferença. E muitas vezes, a melhor maneira de honrar a tradição é reinventá-la. Bob Dylan aprendeu isso cedo. E o mundo jamais voltou a ser o mesmo na música, na cultura e no comportamento das pessoas.