Todo charme, simpatia e burrice da mulher brasileira

Todo charme, simpatia e burrice da mulher brasileira

Eu tô cansado de saber que os leitores, em sua maioria, não gostam nem um pouquinho de ler os meus textos, quando eles (os textos) são tristes ou violentos. Filme triste, novela violenta, ainda vá lá, mas, crônica-drama ninguém merece.

Não tenho boas notícias, amigos. Esta crônica não somente é triste, mas, violenta também. Dou-lhes uma. Dou-lhes duas. Dou-lhes três. Os olhos incomodados que se retirem. Sem ressentimentos, cambada. Para amenizar a agonia daqueles que continuarem comigo pelas linhas seguintes, hei de me esmerar no sarcasmo e na fina ironia, para não ser tão grosseiro quanto pareço desde o título.

O ser humano — única criatura da galáxia que gosta e sabe torturar — é capaz de proezas incríveis como, por exemplo, decifrar o genoma, fazer o quadradinho de oito e barbarizar contra o semelhante, um animal e, até mesmo, uma planta. Não é brincadeira: tem gente que sente prazer em deixar uma planta secar de sede. Uns idiotas, de tão desavisados da própria estultice, agridem também os minerais, ao chutarem as pedras do caminho, ao invés de simplesmente retirá-las, como ensina Carlos Drummond. São uns estúpidos incorrigíveis com os artelhos fraturados.

“Para pisar no coração de uma mulher, sapatilhas de arame, alpercatas de aço…”, escreveu um talentoso trovador nordestino, um daqueles artistas que, de tão delicado e sensível, até parece mulher (é o que se diz de um homem meigo). Há quem se vingue da poesia ao desdenhar que a lira seja coisa de veado. Sei muito bem pelo que passa um poeta metido com as infindáveis incompreensões do mundo. Já fui poeta, eu sei. Veado não fui, nem sou. Mesmo assim, espero que ainda me queiram bem, por gentileza.

Nádegas à parte, a polêmica que move as resenhas de uns milhares de cidadãos nos últimos dias, aqui na minha aldeia idiota (favor não confundir com “Aldeia, Aldeota” que o Ednardo cantou), é se o crudelíssimo crime cometido por um ex-marido truculento seria classificável como “tentativa de assassinato” ou “lesão corporal grave”. O celerado doméstico queria matar ou só machucar a sua amada?

Enquanto as autoridades do Judiciário digladiam em busca do crime perfeito no qual enquadrar o desenquadrado indivíduo, a vítima tenta se reerguer, se recuperar da longa sessão de tortura a que foi submetida, quando o ex-benzinho perfurou-a nos olhos com uma faca de mesa, a mesma que ele usava para picar o bife e descascar laranja, quando ainda moravam juntos a formarem um belo casal (é o que o povo dizia à época). “O jogo de talheres foi presente de mamãe…”, ela conta comovida, sem encarar o repórter, já que nada enxerga além do seu pesadelo particular.

Uma equipe de abnegados oftalmologistas não-cubanos debruça-se sobre o caso dificílimo, mas, a verdade é que a mulher está cega e a chance dela voltar a enxergar, se muito, beirará 25% da visão num dos olhos. O outro deles já era. Que o amor é cego, todo mundo já sabia. Que a justiça deveria ser igualmente cega, eu também já supunha. Mas, no Brasil, ela tem se mostrado zarolha.

Podem me criticar à vontade: eu sinto dó de uma mulher. Porque eu também já fui mulher, eu sei. Aliás, eu tenho certeza. Na Idade Média, por exemplo, fui tratada como louca só por ter orgasmos, então, queimaram o meu corpo em praça pública: “Fogo na possuída!”, gritava o bispo (meu ex-amor) com a empolgação da multidão hipócrita. Quando criança, na tribo africana em que nasci, num ritual vudu dos mais emporcalhados, tive o clitóris arrancado com cacos de vidro, para jamais sentir prazer sexual, honrar os meus pais, cumprir a tradição e, enfim, satisfazer os deuses.

Durante a guerra, já fui estuprada por um pelotão inimigo (pelotões amigos também têm lá os seus pecadinhos) numa aldeia vietnamita, em nome da paz, da loucura e da pátria. Enquanto eu crescia num muquifo do agreste nordestino, ainda menininha, minha mãe se fazia de cega, surda e muda. Daí fui abusada pelo meu pai, pelo meu avô paterno, pelo meu avô materno, pelos meus tios embriagados, pelos primos adolescentes, pelos vaqueiros da região e pelos agregados que por aquele cu de mundo passassem em busca de diversão.

Há cem anos, no meio da selva amazônica, acocorada no barranco ribeirinho, eu pari mais filhos do que pode parir uma cachorra. Portanto, eu posso lhes afirmar que sei muito bem o que sente uma mulher, pois o nome dela é dor. Seu apelido é amor. A minha provocação chama-se burrice. Daí o título deste texto. Burro mesmo é quem insiste em não entender.

Voltando à barbárie atual, pelo que imprensa noticiou, a moça teria registrado vários boletins de ocorrência na tentativa de se proteger das ameaças do ex-docinho-de-coco. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura? O Estado não garantiu a ela a proteção da lei. Então, o ex-eterno-namorado bateu e depois furou os olhos da amada com a prataria que a sogra deu.

Submerso nas vinte quatro horas diárias de escuridão e medo, o que dirá agora o coração daquela mulher, ao se lembrar que um dia, num passado recente, ela se afeiçoou pelo próprio algoz, beijou-o na boca, apaixonadamente, com os olhinhos bem fechados? Não. Não se trata de burrice, gente. Acontece que ela é apenas uma mulher.