Indicado a 8 Oscars, uma das histórias de amor mais belas do cinema está na Netflix Divulgação / The Weinstein Company

Indicado a 8 Oscars, uma das histórias de amor mais belas do cinema está na Netflix

Contar uma história que procura a todo custo evocar em quem assiste uma mensagem de otimismo — a despeito da gravidade dos assuntos que aborda — pode ser uma missão inglória, uma vez que nem sempre se chega ao equilíbrio perfeito entre entretenimento e reflexão. “O Lado Bom da Vida” rejeita a cilada de seduzir a plateia de modo tolo, mas se vale de protagonistas reconhecidamente carismáticos, cujo valor artístico (e monetário) aumenta a olhos vistos em Hollywood.

Romance completamente anticonvencional, a trama é, sem mercês, uma revelação em meio a tanta baboseira pseudoartística que tenta conferir lastro de filme de amor a produções de todo descartáveis. Num de seus trabalhos mais repletos de gênio, David O. Russell junta dois astros jovens e bonitos do cinema contemporâneo sem a menor cerimônia em fazê-los passarem por tipos desajustados, em apuros psiquiátricos sérios o bastante para serem encarados até com certa repulsa, e a partir de então, burilá-los, remover as camadas da doença mental — diagnosticada, mas de tratamento intermitente e, assim, pouco eficaz — a fim de deixar florescer a beleza relevante do que querem transmitir.

O filme, lançado no Brasil em 2013, apresenta um Bradley Cooper muito diferente do que sua figura se habituou a representar no cinema desde que o ator surgiu na televisão, na bobinha “Sex and the City”, em 1999, com uma ou outra exceção pontual. Erigindo uma carreira com bastante disciplina, tijolo por tijolo, Cooper talvez tenha chegado ao melhor papel de sua trajetória profissional em “O Lado Bom da Vida”. Seu personagem, o professor Patrizio Solitano Jr., o Pat, é, grosso modo, um desbravador de almas. Mas não consegue libertar seu próprio espírito.

Ao falar do distúrbio mental desencadeado num homem que, depois de flagrar a mulher no chuveiro com outro, não volta ao que era, Russell sabia muito bem os perigos a que estaria se expondo. Pat voa sobre o sujeito — o que o diretor, com acerto, apenas sugere — e a demonstração (inconsciente) de virilidade e honradez custa-lhe caro. O protagonista é internado num hospital psiquiátrico onde permanece por oito meses, perde o emprego no colégio onde o amante da esposa Nikki, personagem de Brea Bee, também lecionava e, ironicamente, não consegue deixar de amá-la, se é que o tenta. Por ser forçado a cumprir a medida restritiva que o obriga a manter ao menos 150 metros de distância da agora ex-cônjuge, tem de se submeter a morar de favor com os pais, Dolores, vivida pela atriz australiana Jacki Weaver, e Pat Sr., de Robert De Niro, que dispensa apresentações, mas que exibe rendimento muito inferior à expectativa.

Em grande forma, Weaver, já experimentada, repete o show de “Reino Animal” (2010), quando foi dirigida pelo compatriota David Michôd, e eclipsa De Niro em muitos lances, preparando bolas que o colega nem sempre pode cortar. A primeira escalada do roteiro vem com a entrada de Jennifer Lawrence em cena, nunca dispensável e tampouco gratuita. Tiffany, sua personagem, perde o marido policial de forma prematura e violenta, trauma a que responde indo para a cama com os todos os colegas do escritório em que trabalhava, o que também resulta em demissão. Apresentados num jantar oferecido por sua irmã, Veronica, interpretada por Julia Stiles, e o marido, Ronnie, papel de John Ortiz, Pat e Tiffany logo se rendem à atração que só dois indivíduos com suas características tão peculiares podem desenvolver um pelo outro.

A transição de Pat e Tiffany da condição de vilões para mocinhos e vice-versa é o genuíno mote do filme. Derrubando alicerces sólidos da sociedade em que se inserem, cada um do seu jeito, a dupla compõe personagens fora de qualquer alcance, sobre os quais é impossível se elaborar inferências precipitadamente. A ironia cheia de método e precisão de Russell ao exibir Pat como um louco por adotar o comportamento que se espera de qualquer pessoa normal e agredir o homem que ia para a cama com sua mulher — e enaltecer sua retidão, espontânea ou cultivada, em não impingir o mesmo castigo à adúltera (até porque não adiantaria) — acha esteio na autodestruição da promiscuidade de Tiffany. Ele, limpando sua honra com o sangue daquele que enxovalhara seu casamento, torna-se merecedor de um isolamento de oito meses num hospício; ela, por sua vez, entregando-se sem pudores à conduta indecorosa que a ausência do marido lhe inspira, é perseguida, anatematizada, e tem de viver numa edícula, nos fundos da propriedade em que moram os pais. Ou seja, estão cercados.

À medida que se aproximam, Pat e Tiffany descobrem os pontos de contato em suas personalidades, bem como o que os repele entre si. Desde o primeiro instante, o personagem de Cooper deixa claro que, em que pese toda a desgraça que se lhe abatera, ainda amava Nikki, argumento a que Tiffany finge acatar, mas intuindo, corretamente, que pode chegar ao coração do professor. Para tentar se reaproximar de Nikki, Pat resolve escrever uma carta se desculpando por todo o contratempo que pode ter lhe causado, sugerindo, como se isso fosse mesmo razoável, que recomeçassem de onde haviam sido obrigados a parar. Como Veronica é amiga de Nikki, Tiffany se oferece a persuadir a irmã a entregar a mensagem, contanto que Pat aceite ser seu par num torneio de dança. O que se vê a seguir, com variações de intensidade e enfoque, é o congraçamento de dois atores cuja química já deu azo a muita fofoca, mas que nunca passou de uma amizade desinteressada, o que, claro, facilita muito atingir as cenas memoráveis de “O Lado Bom da Vida”, efeito redivivo outras três vezes — em “Trapaça” (2013) e “Joy: O Nome do Sucesso” (2015), também de David O. Russell, e “Serena” (2014), levado à tela por Susanne Bier. Desde os ensaios para o concurso, que redundam numa apresentação deliciosamente sui generis e no ponto alto do filme, os dois atores oferecem ao público composições sublimes, mais Cooper que Lawrence, que se diga.

Por não desfrutar do star appeal de que goza a colega, o ator teve de, literalmente, rebolar para manter o frescor de seu personagem, missão que executa bravamente. Sua escolha por uma performance minimalista, dando espaço para Tiffany aparecer na hora exata, é seu plano matador. Cooper lança mão de seus dotes físicos, do olhar penetrante, da voz maviosa, para sobressair à fragilidade de Pat, o que poderia atirá-lo a uma canastrice sem remédio. Expedito, não se acovarda frente ao tamanho de Lawrence e mostra um desempenho irretocável, que comove por dimensionar a força oculta por trás de um homem alquebrado pela vida — o que lhe daria todas as credenciais para, ao menos, a indicação ao Oscar, como aconteceu com ela, que venceu o prêmio de Melhor Atriz da Academia por este trabalho, em 2013.

“O Lado Bom da Vida”, no entanto, não se conforma em ser uma disputa de dois grandes atores, muito menos uma guerra de egos — aliás, pelo contrário. Todos os elementos operam em conjunto, proporcionando um todo coeso, redondo, acurado, mediante o qual a ideia de reconstrução da vida fica inequívoca para o público, bem como a da reordenação dos afetos, por mais improvável que isso se revele em uma ou outra curva da estrada.


Filme: O Lado Bom da Vida
Direção: David O. Russell
Ano: 2012
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 10/10