Filme da Netflix é uma jornada que vai te arrepiar por 108 minutos Aidan Monaghan / Netflix

Filme da Netflix é uma jornada que vai te arrepiar por 108 minutos

Religião e fé são variações de um mesmo tema, que alcança ainda o misticismo e, refinando-se um pouco mais a perspectiva, as relações entre Deus e o homem. Se a natureza divina se faz presente em rigorosamente todos os seres, animados ou inanimados, racionais ou não, como pensou Spinoza, o Criador seria também capaz de apresentar-se sob uma forma curiosamente ambígua, juntando num único ser a constituição sem falhas que o difere de qualquer outra entidade, e a matéria, perecível e dúbia, que conhecemos tão bem. Em “O Milagre”, o chileno Sebastián Lelio resolve encampar novos e indigestos pontos de vista, aqui voltados a uma das controvérsias mais frutíferas da civilização. Lelio mira Deus e de que forma certos homens O veem, explicitando a confusão deliberada em torno da necessidade de se guardar a fé e de se ser sempre zeloso com os propósitos nada cândidos que visam a manter aceso o interesse nas coisas do Altíssimo.

“O Milagre” é a convincente história de uma farsa. Com o filme, baseado no romance homônimo de Emma Donoghue publicado em 2016, o diretor — celebrizado por “Uma Mulher Fantástica” (2017), Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2018 — pretende atingir o coração do espectador no que ele pode ter de mais genuíno e, a um só tempo, de mais frágil: a crença de que a vida humana deve ser permeada pelo componente metafísico da religião e da espiritualidade, nessa ordem. Para tanto, junto com Alice Birch e Donoghue, dá à luz um texto ágil, em que os 110 minutos de projeção transcorrem como num piscar de olhos, numa fluidez que causa espécie. Desempenhos como o de Florence Pugh são sempre um bônus em histórias cativantes já em essência, ou por tocarem superfícies muito delicadas do público, ou devido ao encanto persuasório que essas tramas apresentam para aqueles que, à primeira vista, não se identificam em nada com o que se vai assistir. Sua Lib Wright, uma enfermeira inglesa, é deslocada para a Irlanda em 1862, mediante um carnudo salário, a fim de cumprir a perturbadora missão de tirar os véus de um mistério artificioso, a sobrevivência de uma garota depois de quatro meses num rigoroso jejum. Anna O’Donnell, cuja firmeza dramática só perde mesmo para a da protagonista, já é, claro, adorada como a própria Virgem, e Kíla Lord Cassidy empenha nisso tanta energia que, a certa altura, torna-se um deleite imaginar um embate mais objetivo e cabal entre as duas. O plano de fundo histórico remonta à Grande Fome da Irlanda, de 1845 a 1849, chaga ainda por cicatrizar na economia e, por óbvio, junto ao povo, num misto de inconformidade, apatia, revolta e um pendor doentio a agarrar-se a ilusões, dar crédito a falsos profetas e incensar deuses de barro. A Grande Fome aniquilou cerca de um quarto da população do país, e a resistência de Anna por si só tinha o condão de espalhar entre os outros aldeães o sentimento dicotômico de que poderiam também eles viver nutrindo apenas a alma, se, por evidente, chegassem ao grau de abnegação daquela moça tão frágil à primeira vista, mas um rochedo por dentro. Destarte, estariam para sempre imunes a pragas como a que devastou os batatais de todo o país, principal fonte de sustento das famílias irlandesas, e da consequente avalanche de delitos que extrapolou a lotação da cadeia de Kilmainham Gaol.

Lelio guarda para o derradeiro momento a revelação do segredo de polichinelo da santinha do pau oco, trabalhando nuanças muito sutis na composição naturalmente límpida de Cassidy, dispondo para isso com Pugh, um azougue desde que revelada por William Oldroyd em “Lady Macbeth” (2016). À medida que as duas se aproximam, tudo o que parecia etéreo se desvanece mesmo, a fantasia aparta-se da vida como ela é — com Anna deixando-se envolver toda pelo manto de antagonista e, desafiadoramente, rompendo a quarta parede a fim de encarar o espectador, seu maior cúmplice — e cada um tendo de arcar com as consequências da própria estupidez, medrada com a cegueira de soluções fáceis para problemas bastante complexos. “O Milagre” talvez seja uma das mais argutas contribuições do cinema para o apetite do homem por prestidigitações que aliviem-lhe o tormento dos enroscos de que não consegue sair, tenha deles culpa ou não. O inexplicável ronda-nos do berço à cova, bem como a maldade de gente que se locupleta com o desespero de quem crê em tudo.

“O Milagre” é a convincente história de uma farsa. Com o filme, baseado no romance homônimo de Emma Donoghue publicado em 2016, o diretor — celebrizado por “Uma Mulher Fantástica” (2017), Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2018 — pretende atingir o coração do espectador no que ele pode ter de mais genuíno e, a um só tempo, de mais frágil: a crença de que a vida humana deve ser permeada pelo componente metafísico da religião e da espiritualidade, nessa ordem. Para tanto, junto com Alice Birch e Donoghue, dá à luz um texto ágil, em que os 110 minutos de projeção transcorrem como num piscar de olhos, numa fluidez que causa espécie. Desempenhos como o de Florence Pugh são sempre um bônus em histórias cativantes já em essência, ou por tocarem superfícies muito delicadas do público, ou devido ao encanto persuasório que essas tramas apresentam para aqueles que, à primeira vista, não se identificam em nada com o que se vai assistir. Sua Lib Wright, uma enfermeira inglesa, é deslocada para a Irlanda em 1862, mediante um carnudo salário, a fim de cumprir a perturbadora missão de tirar os véus de um mistério artificioso, a sobrevivência de uma garota depois de quatro meses num rigoroso jejum. Anna O’Donnell, cuja firmeza dramática só perde mesmo para a da protagonista, já é, claro, adorada como a própria Virgem, e Kíla Lord Cassidy empenha nisso tanta energia que, a certa altura, torna-se um deleite imaginar um embate mais objetivo e cabal entre as duas. O plano de fundo histórico remonta à Grande Fome da Irlanda, de 1845 a 1849, chaga ainda por cicatrizar na economia e, por óbvio, junto ao povo, num misto de inconformidade, apatia, revolta e um pendor doentio a agarrar-se a ilusões, dar crédito a falsos profetas e incensar deuses de barro. A Grande Fome aniquilou cerca de um quarto da população do país, e a resistência de Anna por si só tinha o condão de espalhar entre os outros aldeães o sentimento dicotômico de que poderiam também eles viver nutrindo apenas a alma, se, por evidente, chegassem ao grau de abnegação daquela moça tão frágil à primeira vista, mas um rochedo por dentro. Destarte, estariam para sempre imunes a pragas como a que devastou os batatais de todo o país, principal fonte de sustento das famílias irlandesas, e da consequente avalanche de delitos que extrapolou a lotação da cadeia de Kilmainham Gaol.

Lelio guarda para o derradeiro momento a revelação do segredo de polichinelo da santinha do pau oco, trabalhando nuanças muito sutis na composição naturalmente límpida de Cassidy, dispondo para isso com Pugh, um azougue desde que revelada por William Oldroyd em “Lady Macbeth” (2016). À medida que as duas se aproximam, tudo o que parecia etéreo se desvanece mesmo, a fantasia aparta-se da vida como ela é — com Anna deixando-se envolver toda pelo manto de antagonista e, desafiadoramente, rompendo a quarta parede a fim de encarar o espectador, seu maior cúmplice — e cada um tendo de arcar com as consequências da própria estupidez, medrada com a cegueira de soluções fáceis para problemas bastante complexos. “O Milagre” talvez seja uma das mais argutas contribuições do cinema para o apetite do homem por prestidigitações que aliviem-lhe o tormento dos enroscos de que não consegue sair, tenha deles culpa ou não. O inexplicável ronda-nos do berço à cova, bem como a maldade de gente que se locupleta com o desespero de quem crê em tudo.


Filme: O Milagre
Direção: Sebastián Lelio
Ano: 2022
Gênero: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.