Sabemos que a humanidade se perde — e permite-se perder — nos anseios da salvação que talvez não mereça. O que não é totalmente conhecido, pelo menos não com a riqueza de detalhes necessária, é como podemos resistir aos inimigos que nós mesmos criamos, cada vez mais ousados, ávidos por reivindicar o que consideram ser seu por direito, visto que nosso destino parece não nos importar. “Bird Box Barcelona” parte de uma premissa bastante única para um panorama geral das várias misérias humanas, insistindo no argumento da morte à luz da última possibilidade de alguém se redimir, mas adicionando à mistura o componente apocalíptico, o que, sem dúvida, torna a trama muito mais desconfortável de maneira invasiva, começando pela estética. O trabalho dos irmãos Àlex e David Pastor, continuação do excelente filme de Susanne Bier, transita entre sequências aparentemente desconexas para o eixo em torno do qual a história se move, replicando uma estética que a literatura já havia previsto com sucesso quase três décadas atrás.
Sebastián e sua filha são a própria imagem da alegria deslizando sozinhos pela quadra de um ginásio vazio. Anna, a personagem de Alejandra Howard, é um suspiro de graça e um breve alívio diante da vida, executando belos movimentos com os patins que ganha de aniversário do pai, enquanto o sol invade aquele local um tanto assustador através das janelas embaçadas, um lirismo possível na fotografia de Daniel Aranyó. O que se segue desafia a lógica, mas o roteiro dos irmãos Pastor sabe como amarrar as pontas soltas da narrativa, encarregando Mario Casas de tomar as rédeas do filme. O engenheiro Sebastián, seu anti-herói, enfrenta um trio de pistoleiros cegos, escapa por pouco, encontra um grupo de outros andarilhos desafortunados, peregrinando como eles por um planeta que nada mais tem a oferecer, embora existam alternativas. Casas mostra-se confortável na pele do messias afligido pelas chagas que martirizam seu séquito, e, como Moisés, guia seu povo em direção à terra prometida, em busca do gerador de energia que encurtará seu sofrimento. Mas antes, precisa de algumas horas de sono e de alguém que cuide de suas feridas.
Ao elemento místico do fim e do recomeço da vida, com Sebastián liderando aquele grupo de pessoas esfarrapadas e famintas como se estivessem atravessando o mar Vermelho, os diretores-roteiristas acrescentam percepções, como o poder de observar o luto e se propõem a ressurgir por meio dele e com ele. No segundo ato, uma cena com Sebastián e Anna no terraço de um prédio, enquanto pessoas e cães vendados caminham na rua repleta de veículos abandonados há algum tempo, dá ao espectador a certeza de que existe mesmo essa intenção, replicando muito do que o brasileiro Fernando Meirelles expressou em “Ensaio sobre a Cegueira” (2008), baseado no romance homônimo do português José Saramago (1922-2010).
Filme: Bird Box Barcelona
Direção: Àlex e David Pastor
Ano: 2023
Gêneros: Terror/Mistério/Ficção Científica
Nota: 8/10