Pôr termo a ciclos, virtuosos ou nem tanto, vibrar com progressos na vida profissional, constituir uma família que dá o respaldo imprescindível em circunstâncias particularmente infelizes, poder contar com amigos leais, aqueles que entendem, se compadecem e não sossegam enquanto não veem resolvido o problema de alguém de quem se gosta como a um irmão (às vezes mais) é um dos melhores jeitos de se fazer a vida valer a pena, ainda que, claro, haja quem não valorize nada disso, ou por não gozar de nenhuma dessas condições, ou por se julgar capaz de encontrar sozinho fecho para situações intrincadas demais. Existe uma categoria especial (e controversa) de homens singulares, que transitam pela vida e pelo tempo sem cerimônia, salvando a humanidade de destinos satânicos. Esses semideuses garantem ao gênero humano perpetuar-se no planeta — malgrado destruindo tudo a sua volta —, mas protagonizando um ou outro lampejo de razão em determinados ambientes e sob uma conjuntura friamente estudada.
Há uma imensidão de cenários quanto a se compreender a passagem do tempo. Para uns, o avançar dos anos é encarado sob a luz do desafio. Implacável com todos, a vida não perdoa, e é ainda menos leniente em relação a quem costuma ir empurrando com a barriga projetos que classifica como inadiáveis, mas que se estendem de uma a outra fase, dando-lhes a sensação cavilosa de que esses planos migram para uma dimensão paralela entre o existir e a finitude e lá esperam, com toda a disciplina, até que nos desperte, afinal, o clarão da sensatez e nos resolvamos por materializá-los. O arrojo de gestar esses sonhos é sempre acompanhada por um bem-vindo receio, inversamente proporcional à importância da empreitada; quanto mais um anseio qualquer mexe com nossas expectativas, trazendo ora alívio, ora uma tribulação quase sufocante, mais nos assaltam os sentimentos mais arcaicos (e sábios) de autopreservação e mais propensos nos tornamos a capitular outra vez, principiando todo o ciclo do zero e revivendo as chances de, novamente, regressar a inércia do congelamento do espírito, sensato, estéril e progressivamente avassalador.
“Missão: Impossível: Protocolo Fantasma” (2011) é, decerto, o filme mais revelador da franquia. Brad Bird tem o condão de fazer do longa uma espécie de resumo da trajetória de Ethan Hunt, o anti-herói que protagoniza a saga, enquanto aproveita para acochambrar o espírito do público quanto aos próximos desafios da invejável vida de misérias do espião mais querido do cinema — sorry, mister Bond. Aqui começam a se fazer notar com mais força as zonas cinzentas de Hunt, incorporado com dedicação tocante por um Tom Cruise que, finalmente, deixa aflorar nuanças psicológicas menos insinuantes do personagem, ao passo que as estripulias parte mitológicas, parte reais intrínsecas a sua natureza caem no gosto do freguês, que continuou voltando. Cruise, um menino de então 49 anos, domina a proposta de projeção física de “Protocolo Fantasma” como poucos atores na sua faixa etária sequer ousariam pensar, sem prejuízo da interpretação, um tanto stanislavskiana demais — e ele certamente o sabe. Todavia, sua presença na tela já superou há muito o estigma do galã razoavelmente talentoso e espantosamente versátil capaz de dizer um bife sem se perder, arrancando emoções guardadas em lugares muito mal iluminados daqueles que o assistem, mas sendo prudente quanto a preservar sua própria sensibilidade, que repassa aos tipos que encarna como se tirasse um fiapo da roupa. Cruise tornou-se, sem favor algum, um dos grandes atores da história do cinema; mesmo quando erra, o faz mais por excesso de zelo que por falta de substância. Se não, vejamos.
O enredo de “Protocolo Fantasma” não enfeita o pavão — aliás, muito pelo contrário. Que não se espere o capricho estético das produções capitaneadas por Christopher McQuarrie, não por acaso o diretor que assinou dois longas consecutivos da grife, “Nação Secreta” (2015) e “Efeito Fallout” (2018). Aqui, Hunt é instado a escapar de uma penitenciária russa, o que consegue, por evidente, onde era mantido por tentar impedir, adivinhe, um ataque nuclear a partir de um satélite. Todo o roteiro de André Nemec e Josh Appelbaum gira em torno do plano elaborado por Benji, do sempre divertido Simon Pegg, para contornar as aspirações do inimigo, agora auxiliado diretamente por William Brandt, o agente da CIA vivido por Jeremy Renner, uma grata surpresa especialmente na virada do segundo para o terceiro ato, numa sequência dentro de um reator pronto a ser ativado por Hendricks, o maníaco interpretado por Michael Nyqvist (1960-2017), adepto do quanto pior, melhor e que colabora com o serviço secreto da Rússia só para épater la bourgeoisie. Cabe à trupe de Hunt, completa pela espiã Jane Carter, de Paula Patton, uma pintura na tela, conter os arroubos totalitários dos candidatos a donos do mundo da vez. Qualquer semelhança com a realidade talvez não seja apenas mera coincidência.
Em “Missão: Impossível: Protocolo Fantasma” já é possível antever os dilemas de Ethan Hunt — e, por extensão, de Tom Cruise — quanto à necessidade de entender quando certas fases da vida devem ser encerradas. Cruise tem muitas outras aventuras a viver, diante das câmeras ou por trás delas, e pode muito bem ser, como já se especula à boca miúda, um Clint Eastwood dos filmes de espionagem. Essa, sim, é uma missão bastante possível.
Filme: Missão Impossível — Protocolo Fantasma
Direção: Brad Bird
Ano: 2011
Gêneros: Thriller/Aventura/Ação
Nota: 9/10