Um dos melhores filmes de espionagem da década está na Netflix e vale cada milésimo de segundo do seu tempo Nick Briggs / Netflix

Um dos melhores filmes de espionagem da década está na Netflix e vale cada milésimo de segundo do seu tempo

É impossível alguém dizer que um filme de espionagem não transmita-lhe nada. Narrativas como essas suscitam, no mínimo, a curiosidade do público, que passa logo à uma vontade insana de saber se aquela história aconteceu exatamente como o projetado, ou, como sói se dar, a ficção colaborou muito mais do que o recomendável. Não se sabe bem por que Ashraf Marwan (1944-2007) virou o homem do Egito no serviço secreto israelense, mas algumas hipóteses nada nobres vêm à roda conforme “O Anjo do Mossad” toma corpo. O israelense Ariel Vromen dispensa ao material que lhe cai em mãos um gosto por conhecer melhor os bastidores da trama; se os atores são parecidos com seus personagens; se não houve encaminhamento ideológico para esse ou aquele lado; o que teria levado o cineasta a escolher o assunto; o que cada intérprete tinha em comum ou de flagrantemente distinto com os tipos a que deram vida, abelhudices de um lugar-comum tão presumível quanto desculpável, e os buscadores de pesquisa estão aí para corroborar a tese. Assim que um filme é lançado, nascerá com ele um súbito interesse pela história sobre a qual se debruça, positivo ou não. Antes isso que nada, e melhor ser malfalado que esquecido.

Vromen esmera-se em desvendar a alma perturbada de Marwan, constantemente rodeado por figuras que sabia que teria de enfrentar em algum momento da vida, embora não soubesse de que jeito. Casado com Mona, uma das cinco filhas do presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser (1918-1970), Marwan, a quem Marwan Kenzari consegue imprimir os vários matizes de que o personagem carece, fica muito mais próximo do homem que vem a ser o sucessor de Nasser, Anwar Al Sadat (1918-1981). O diretor explora com competência o espaço que separa o protagonista do sogro influente, deixando outras lacunas, facilmente preenchíveis, quanto a esclarecer a razão pela qual Marwan, um empresário bem-sucedido no Cairo dos anos 1970, renega a família — que o esconjura primeiro, a começar, por óbvio, de Nasser —, e se aproxima de seus opositores, primeiro de Al Sadat, depois do próprio governo de Israel. Nesse ponto, uma controvérsia resiste até hoje e não se pode alegar peremptoriamente que Marwan queria mesmo infiltrar-se junto às autoridades do então maior desafeto de seu país, ou se entre desgostoso e algo espavorido, decidiu limpar a barra com o pai de sua mulher do modo mais arriscado, tentando engambelar um dos serviços de inteligência mais eficientes do mundo.

O conflito entre Marwan e Nasser abre o roteiro de David Arata para um sem-fim de possibilidades, mas Vromen equilibra-se bem entre analisar a carência emocional de seu protagonista — manifestada pela performance de Kenzari, onde nada sobra nem falta e que permite que o drama de seu personagem venha à tona na intensidade certa — e os desdobramentos políticos de um Oriente médio sempre muito longe de qualquer entendimento. Nessa conjuntura, estava à mesa um possível pedido de ajuda do Egito para os Estados Unidos, preterindo assim a União Soviética, cujo colapso, acredita Marwan, é iminente. Como se sabe, Nasser, papel de Waleed Zuaiter, não lhe dá ouvidos, e ainda o espinafra diante de todo o ministério. Em particular, mas fazendo questão de que o escutassem, o presidente também explicita sua desaprovação quanto ao homem pelo qual Mona, interpretada por Maisa Abd Elhadi, optara para marido. Quando Nasser morre e Sadat, personagem de Sasson Gabai, assume o governo, Marwan tenta prever as jogadas seguintes e ganhar a simpatia do novo chefe de Estado, o que não conseguira com o próprio sogro, delatando funcionários que sabia ímprobos e mandando rastrear os movimentos daqueles sobre os quais adejava uma grossa nuvem de suspeita, o que, claro, tinha muito de desvario. Pouco depois, Marwan não é capaz de fazer justiça ao codinome de Anjo e assume a operação que o empurra para o inferno, condenando-se de uma vez por todas.

Apesar de sobrarem fios soltos, como o estranho casamento de Marwan e Mona, que nunca usou o sobrenome do marido, essa é uma trama que pulsa, cujo suspense envolto no pano de fundo do mote principal cativa, a despeito da complexidade técnica. Vromen regula a tensão de acordo com a face do que intenta desnudar, ambientando a cena sem dificuldade entre Londres e o Cairo de há meio século. Kenzari, um ator cada dia mais completo, percebe a ambivalência, a inconstância que pautou a vida e a morte de seu personagem, numa duvidosíssima queda da sacada do apartamento em que vivia na capital inglesa. Ashraf Marwan foi uma das figuras mais enigmáticas da história de um pedaço do mundo ainda por se revelar, e sem grandes pretensões, “O Anjo do Mossad” fornece pistas valiosas para tanto.


Filme: O Anjo do Mossad
Direção: Ariel Vromen
Ano: 2018
Gêneros: Espionagem/Thriller/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.