Ao longo da carreira, Ben Affleck tem se saído melhor que a encomenda na pele de figuras ora desditosas, ora bem-sucedidas, mas sempre imersas em discussões de fundo ético sobre o mundo corporativo e, o principal, rodeado de bens materiais de que a maior parte dos terráqueos nunca poderia desfrutar ainda que vivesse mil anos, como se vê no excelente “AIR: A História Por Trás do Logo” (2023), dirigido e coestrelado por ele. Esta é, sem dúvida, a aposta máxima de Affleck para o Oscar 2024, malgrado ele não o confesse nem se pisoteado por todo o elenco da NBA ao longo dos 48 minutos que duram uma partida de basquete da superliga americana do esporte. A se tomar o histórico do ator-diretor e as escolhas que fez na nova empreitada, são vultosas as chances quanto a novamente se cacifar para a premiação da Academia, embora “AIR” seja muito, muito mais.
Não deixa de ter lá sua graça essa nonchalance de Affleck, um dos artistas mais aplicados de Hollywood. “Aplicado” pode soar como uma provocação um tanto injusta demais, uma vez que ninguém chega aonde ele está se não a custa de talento — e eu reconheço o talento de Ben Affleck. O ponto é outro. Affleck é um dos poucos realizadores da indústria cinematográfica hoje players da importância de se perseguir sonhos até que eles se tornem, afinal, realidade, e isso nunca é fácil para quem quer que seja. Ninguém olha para Ben Affleck e de pronto se lembra de sua longa jornada, desde o tolinho noir teen “The Dark End of the Street” (1981), dirigido por Jan Egleson, quando começou a sentir a temperatura perigosamente instável da profissão que viria a abraçar, aos nove anos, e tampouco imediatamente o associa a “Argo” (2012), vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2013, ou mesmo a “Gênio Indomável” (1997), cem mil vezes mais saboroso — o que não é cem mil vezes mais saboroso aos vinte e poucos anos? —, com que levou a estatueta de Melhor Roteiro Original, com o amigo de infância Matt Damon. É justamente esse o nome que faz com que tudo o que se disse até aqui faça sentido, bem como faz também com que pareça razoável torcer por “AIR” com nove meses de antecedência.
Ainda que não dê por isso, Affleck leva à cena esse espírito de bravura, de beligerância mesmo, e o despeja sobre Philip H. Knight, cofundador e ex-CEO da Nike em 1984, que análises precipitadas levam a tachá-lo o protagonista do opulento roteiro de Alex Convery, quando os registros apontam no sentido diametralmente contrário. “AIR”, basicamente um dos maiores cases de sucesso da história do capitalismo, se não o maior, desmistifica muito do que Knight declarara em “A Marca da Vitória” (Sextante; 2016), sua hagiográfica autobiografia, onde resta subentendido que cabem apenas a ele os louros pela criação do tênis que empresta nome ao filme, quando seu mérito foi pouco além de responsabilizar-se por eventuais prejuízos, perder uma ou duas centenas de milhões de um patrimônio multibilionário e, a melhor parte, atirar à rua da amargura os sonhadores que o fizeram embarcar na canoa furada. A Nike parecia ter batido no teto, sem muito mais para onde expandir seus ambiciosos horizontes, dando uma no cravo, outra na ferradura, ganhando, perdendo, acusando o golpe e padecendo da concorrência leônica da Adidas e da Converse, quando entra no jogo um quarentão meio sanguíneo, fora de forma, vestido no melhor estilo tiozão boa-praça — eis outra ótima margem para prêmios, os figurinos de Charlese Antoinette Jones. Mesmo pesadão, Sonny Vaccaro, o olheiro da Nike, desliza para o interior da sala do chefe com a sutileza de um toureiro, e o que se vê daí até a sequência final, com diferentes gradações de esgrima, é uma das mais bravas disputas do cinema recente.
A arrojada interpretação de Damon dá vida a um Vaccaro entre o paranoico e o desabotoado, aquelas figuras heroicas que vestem a camisa de um time e de um negócio que jamais serão seus, por mais que mereça. Ele chega animado, tecendo rasgados elogios a performance de um então jovem armador da Carolina do Norte, expressão máxima do talento e do carisma no esporte da América — e, como se viu, do mundo —, disposto a não sossegar enquanto o transformasse no novo garoto-propaganda da empresa de calçados esportivos de Beaverton, Oregon, reformulada dos pés a cabeça a toque de caixa para o iminente desembarque do atleta. Affleck opta por nunca trazer à cena a imagem de Michael Jordan, mas sente-se sua presença vividamente, e não poderia ser de outro jeito mesmo. O diretor recheia o segundo ato com videoteipes de partidas em que Jordan arrasa a concorrência e, por óbvio, a maior parte dos diálogos gira em torno dele, em especial quando o staff da Nike é chamado a opinar e tudo parece confluir para um incidente diplomático sem precedentes na história do capitalismo. Já que estamos no terreno dos superlativos, este é decerto um dos filmes mais felizes na escalação do elenco de apoio; inferência que se ratifica com Chris Messina na pele de David Falk, o agente de Jordan, prestes a ter uma síncope ao detectar a intenção de Vaccaro de comprar o passe de seu cliente na bacia das almas, o que efetivamente ocorre graças a um expediente não propriamente ousado, mas abusivo. Nesse ponto, Viola Davis coroa a narrativa com sua Deloris, a mãe superprotetora de Jordan, a pessoa que de fato bate o martelo e sacramenta o destino do filho e da Nike.
Sob a perspectiva estética, o filme é uma volta no tempo que, naturalmente, inspira muito mais prazer naqueles que gostam de competições em equipe, sobretudo nos Estados Unidos, e por conseguinte no espectador que volta e meia flagra-se nostálgico das doidices da cultura pop e das personalidades que começaram a frequentar o noticiário de quatro décadas atrás, com menções a cubo mágico, Trivial Pursuit, Dire Straits, Cyndi Lauper, Ronald Reagan (1911-2004) e Diana de Gales (1961-1997). “AIR: A História Por Trás do Logo” é o documento da ingenuidade perdida de uma era mágica, em que até as transações milionárias entre cartolas e tubarões do mercado de luxo tinham mais encanto.
Filme: AIR: A História Por Trás do Logo
Direção: Ben Affleck
Ano: 2023
Gêneros: Drama
Nota: 9/10