Romance na Netflix é um dos filmes mais vistos da atualidade em 100 países e vai triturar seu coração Divulgação / Universal Pictures

Romance na Netflix é um dos filmes mais vistos da atualidade em 100 países e vai triturar seu coração

Infortúnios marcam de tal forma a vida dos homens que, se algum dia fôssemos todos felizes, todo o tempo e ao longo da vida inteira, decerto teríamos passado a uma outra espécie, quiçá mais evoluída ou nem tanto, mas outra, com muito pouco do que nos definia como homo sapiens sapiens, os homens que sabem que sabem. “2 Corações” brinca com esse argumento, uma forma especial, muito digna e muito nobre de vida eterna, observando todas as possíveis margens para ir recuar e seguir com um enredo sem qualquer grande pirotecnia retórica e ainda assim tocante, menos pela mensagem do que pelo jeito que o diretor Lance Hool encontra para fazer com que o público capte a relevância do que se quer dizer.

A humanidade se divide entre os céticos, que acreditam que milagres não acontecem nunca, e os cínicos, aqueles que atribuem uma aura de sobrenaturalidade a tudo quanto se passa na Terra. Isso é o que se pode depreender, em outras palavras, da máxima apresentada na introdução, quando um garoto alto, forte, bonito, aparece sozinho numa ilha paradisíaca, tornada tanto mais perturbadoramente desejável na fotografia de Vincent de Paula. Christopher, o típico mocinho de Jacob Elordi, dá a partida mencionando uma “história que começa antes de ele nascer”, e a maneira despretensiosa e envolvente como Hool elabora o roteiro de Robin Uriel Russin e Veronica Carlysle Hool, filha do diretor, instigando no público a vontade de um final feliz (ainda que, já no título, se esconda a impossibilidade desse desfecho), freia o ímpeto de delatar os vícios e as muitas incoerências da adaptação do trio para um drama real. Entretanto, a costura da primeira trama, protagonizada por Chris, à segunda metade do filme, torna-se confusa ao fim de algum tempo, o que não deixa de constituir-se um trunfo de Hool.

Jorge Bacardi, um dos jovens mais ricos de Cuba, atravessa o mundo na primeira classe dos aviões da Pan Am, enfrentando o pânico de aeronaves e resistindo o quanto pode a acessos de uma tosse obstinada, até que chama a atenção de uma aeromoça — aeromoça, não comissária de bordo, uma vez que Jorge é muito mais novo que Chris, e, a propósito, a Pan Am estava ainda longe da falência. Hool esforça-se o quanto pode para contornar mais embrulhadas cronológicas, porém esse andamento pelo qual opta é, com efeito, arriscado; de todo modo, ele retrocede ainda mais e faz com que Jorge surja como um menino de catorze ou quinze anos, desfalecendo durante uma partida de futebol. O que vem na sequência explica o comportamento pouco usual de um dos herdeiros da célebre fábrica de bebidas, com Adan Canto mais e mais persuassivo num papel cheio de urgências muito mais imperativas do que a de não se permitir orientar pelo estereótipo do amante latino. Nesse ponto, “2 Corações”, que não deixa de ser uma história de amor, submete-se a esse formato, comportando a entrada de Radha Mitchell como Leslie, a mulher com quem Jorge se casa; na outra ponta, o diretor também desenvolve o romance entre Chris e Sam, a colega de faculdade por quem se apaixona e se casa algo precipitadamente, interpretada por Tiera Skovbye, que rouba a cena num diálogo em que também evidencia as dores e a redenção de sua heroína.

No terceiro ato, a carga dramática guardada por Hool desaba sobre o espectador toda de uma vez, momento em que Canto e Elordi, nessa ordem, contam com a oportunidade de novamente se fazer notar depois de muitos lances marcados pelas boas performances do elenco de apoio, com Kari Matchett e Tahmoh Penikett dando vida a Grace e Eric, os pais de Chris, aqui também respeitada essa disposição, ela antes dele. Quando o que estava escrito, além de nas estrelas, no próprio nome do longa se dá, afinal, tem-se a impressão límpida de que um ciclo de fato se conclui, com cada integrante da história descortinando outros horizontes, fim e começo num só lugar.


Filme: 2 Corações
Direção: Lance Hool
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.