O escuro quer silêncio

O escuro quer silêncio

Vivemos, já há algum tempo, em uma zona de conflito na qual discursos e narrativas se confrontam, muitas vezes nas correntes virais das mídias digitais, outras tantas nas ruas e avenidas dos interiores e das capitais.

Quando vamos cicatrizando as chagas do 8 de janeiro de 2023, dia em que a horda antidemocrática ousou sair do escuro dos bunkers digitais ou das sentinelas e vigílias nas portas dos batalhões para depredar o que nos legou Montesquieu, recebemos, nos colos e nas caras, a notícia de mais um avanço da caravana do atraso. O deputado Gustavo Gayer, um dos novos mandatários eleitos pela força propulsora dos curtos vídeos histriônicos e do discurso que se arvora em ilha moral, denuncia o livro “Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios”, do paulista Marçal Aquino. A queixa é de que o conteúdo do romance é pornográfico e inapropriado para figurar na lista de obras indicadas ao processo vestibular da Universidade de Rio Verde (UNIRV). No vídeo em que faz a denúncia, o deputado pinça 3 ou 4 frases do romance, nas quais palavras pesadas e referências sexuais aparecem. No mesmo vídeo, ele afirma que o processo seletivo abrange jovens de até 14 anos, que estariam obrigados à inapropriada leitura. A universidade, com medo e de pronto, retirou da lista de obras indicadas o romance “obsceno”.

Conhecidos os absurdos e sabidos os erros, vamos aos fatos.

O processo seletivo vestibular é aplicado, sobretudo, a alunos egressos do ensino médio, fato que se dá com os jovens já possuindo 17 anos. Dele participam, também, candidatos que já estudam em cursos pré-vestibular e contam com 18, 19, 20 anos ou mais. Alguns, ainda que excepcionalmente, podem fazer a prova como treineiros, quando ainda cursam o ensino médio e contam com 16 anos, embora esse último caso seja excepcional.

Vejamos. De algo imposto a jovens de até 14 anos para algo que, de fato, é aplicado a jovens de 17 anos ou mais – cerca de 90% dos candidatos — e 16 anos em um mínimo percentual, a distância é significativa. Quando tratamos de fazer uma denúncia que expõe uma obra, um autor, uma editora, é preciso responsabilidade, seriedade, zelo, e para quem carrega consigo esses requisitos, a manobra com a idade é, no mínimo, torpe.

Quanto ao alegado conteúdo pornográfico e sem entrar na seara do que é ou venha a ser, mesmo, pornografia, a obra de Marçal Aquino passa longe. Nas quase 220 páginas do livro, se fossem reunidas pelo olhar que catasse feijão de palavras, as cenas de sexo e as palavras pesadas não completariam duas míseras páginas! Tive o trabalho de reler a obra e procurar, uma a uma, as passagens que pudessem dar razão ao discurso denunciativo. Pasmem, as “obscenidades e a pornografia” não chegam a 1% do número de páginas. A tática, no caso, diferente da redução equivocada da idade dos leitores a que a obra foi indicada, é a de separar do contexto o texto, mutilando uma narrativa de 220 páginas para reduzi-la a um amontoado de palavras e de frases apartadas de seus entornos.

A se seguir a linha do que desmontamos acima, restariam fora da fogueira dos Templários digitais menos de 20% das obras já escritas em toda a história. Queimaríamos o “Cântico dos Cânticos”, por seu louvor ao amor erótico; o Édipo Rei, pelo incesto; “Medeia”, pelo assassinato dos filhos; Baudelaire e Rimbaud, por suas flores do mal ou suas temporadas no inferno. Sobraria pouca coisa.

 É claro que o deputado jogou para a sua torcida, fez o que o fez deputado. É claro, também, que a linha será mantida e a cruzada dos que caçam bruxas nas casas alheias e nos livros, enquanto apagam seus históricos de navegação, seguirá. É preciso ficar claro, também e mais ainda, que durante e por sobre os momentos em que o escuro quer impor o silêncio, as vozes da arte, da cultura e da liberdade, replicando Thiago de Mello, bradarão de suas hostes:

“Faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar.”