Para lavar sua alma: filme da Netflix vai melhorar sua segunda-feira instantaneamente Divulgação / Faith Street Films

Para lavar sua alma: filme da Netflix vai melhorar sua segunda-feira instantaneamente

Uma garota bonita, popular, com pais devotados, amigos fiéis e um namorado que faz questão de demonstrar seu amor não teria do que reclamar, mas depois de um evento traumático recente, sua vida parece ter entrado em parafuso. As irrequietudes naturais da adolescência tornam-se especialmente desoportunas, as raras certezas são ainda mais irrelevantes e cedem lugar a dúvidas que, ferozes, consomem o espírito feito agem cupins numa casa velha e abandonada, roendo e destruindo a estrutura mais imperceptível a olho nu até chegar à superfície. Nem todo mundo suporta tamanho desgaste, não é qualquer um que sai ileso depois de tal bateria de provações, agravadas por uma trapaça do destino. Se enfrentar as tantas situações desconfortáveis que se avultam ao longo desse preâmbulo da vida como ela é pode ser uma experiência particularmente dolorosa mesmo em se dispondo de um cenário nitidamente favorável, é quase impossível não pensar no pior quando até seus registros mais indevassáveis transformam-se numa diáfana ilusão, tão traiçoeiros quanto só os sonhos podem ser.

A protagonista de “O Sentido da Vida” (2022) parece completamente desnorteada, e não é para menos. O diretor Nicholas DiBella burila uma ideia pouco original, mas rica de possibilidades, de modo a dar a seu longa a natureza de um drama adolescente em que sua personagem central se descobre outra vez, e motiva o público a também se reinventar. DiBella elabora a conjuntura de tempestade perfeita frisando a vontade da garota de não sucumbir até que recobre sua verdadeira história, perdida em algum lugar da lembrança. Até que isso aconteça, entrementes, perdura a crise existencial que a consome, o pulo do gato do roteiro de DiBella e Paul Root. O filme desenvolve esse conflito de modo absolutamente natural, orgânico, sem dar a entender que nada mais fará sentido na vida dela, ao passo que toma o cuidado de não minimizar seu sofrimento. Ela vive sua dor, deixa clara sua inconformidade, até fica escandalosamente perto de um desfecho funesto, mas se equilibra na corda frouxa da razão. É dessa instabilidade que o enredo se alimenta a fim de manter o interesse de quem assiste, expediente que se prova muito acertado, uma vez que todos podemos nos reconhecer nela.

Todo esse tormento na vida de Alison Spencer se deve a um grave acidente de carro, sobre o qual só se sabe que fora recente. A personagem vivida por Andrea Figliomeni escapa, mas apresenta um quadro de amnésia que o texto de DiBella e Root sugere ser progressivo, e sem garantia de reversão. Seu cérebro é seu pior inimigo, e um inimigo perverso, que não a incapacita, mas lhe priva de prazeres banais. Ela continua falando, escrevendo, dirigindo como se nada houvesse se passado, mas não tem a menor ideia de quem são as pessoas que a rodeiam, a começar por Ethan, o rapaz que costumava lhe dizer juras de amor, vivido por Michael Pavone. Lexi e Heather, as melhores amigas interpretadas por Emma Jessop e Tyler Aser, tentam ajudá-la, mas não são de grande valia, e acabam por se tornar um empecilho ao seu restabelecimento devido aos conselhos para que se afaste de Cameron. O arco dramático principal de “O Sentido da Vida” começa a se fechar no momento em que o diretor passa a apresentar o garoto-problema de Winter Andrews como o único capaz de despertar a personagem de Figliomeni de uma melancolia que já resvala no desespero, ainda que a amizade dos dois nunca seja encorajada pelos pais de Alison, justamente por causa da péssima fama do rapaz. Cameron tem mesmo antecedentes nada lisonjeiros, mas está longe das inclinações delinquentes que todos lhe atribuem. É só um rebelde, com causa, tentando, como sobreviver ao turbilhão que antecede a vida adulta, da mesma forma que a nova amiga — e sendo obrigado a lidar com sérios problemas na relação com o pai.

O filme guarda um desfecho ambivalente, uma vez que o possível romance entre Alison e Cameron não se viabiliza, mas é feliz ao se debruçar sobre as inconstâncias de duas pessoas em busca de um lugar no mundo. A tragédia de que a protagonista sai viva serve como metáfora sutil, mas poderosa, evocando todas as guerras que terá de travar ao longo da vida. Inclusive consigo mesma.


Filme: O Sentido da Vida
Direção: Nicholas DiBella
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10