O filme mais subestimado da história da Netflix Kimberley French / Netflix

O filme mais subestimado da história da Netflix

“Imperdoável” é um emaranhado de histórias, todas eivadas de uma melancolia crescente, obstinada em sua violência explícita, e que, com igual propósito, desaguam num mesmo objetivo, guiadas por uma única personagem. Inspirado numa série de televisão e com Sandra Bullock à frente do elenco, o filme da alemã Nora Fingscheidt, lançado em dezembro de 2021, começa por combinar imagens de flashback com registros atuais, em que se nota a batalha de uma mulher por recobrar sua vida. Ruth Slater, a protagonista interpretada por Bullock, consegue a liberdade condicional depois de ter cumprido vinte anos de cadeia pelo assassinato do xerife, que invadira a casa em que vivia sozinha com a irmã Katherine, a Kate, de Aisling Franciosi, trinta anos mais nova, desde que o pai das duas, vivido por Aaron Pearl, cometeu suicídio. O policial tinha uma ordem de despejo contra Ruth e Kate, porque as prestações do imóvel tinham sido interrompidas havia algum tempo. Fingscheidt leva seu filme para o perigoso terreno da saga ao acompanhar como vai ficando a vida de Ruth fora da cadeia, desviando de eventuais facilidades narrativas ao mostrar como ela reage a seus muitos outros desafios. Se a vida no cárcere não era exatamente fácil, em liberdade a personagem central de “Imperdoável” tem de encontrar em si justificativas quase sobre-humanas quanto a se manter longe de encrenca, ainda que more num pardieiro que aceita ex-detentas em vagas onde o caos e a imundície são a lei. Seu novo lar é o cubículo que divide com outras três mulheres, além de um banheiro, compartilhado com todas as demais moradoras, cabendo-lhe dez minutos diários para tomar banho. Por mais que ela se feche em si mesma, como uma concha no fundo de um oceano de mágoas, as outras parecem saber tudo sobre o seu passado nada glorioso.

A roda do destino faz com que a vida dos homens gire, gire e muitas vezes acabe parando no mesmo lugar. Malgrado o alerta de Vincent Cross, o agente designado para inspecionar seu desempenho durante a soltura vivido por Rob Morgan, para que não mantivesse contato com pessoas de alguma maneira envolvidas no crime que cometera, alguma coisa atrai Ruth para a desgraça que se abatera sobre sua vida duas décadas atrás. Numa visita meio nebulosa à casa em que morara com Kate, hoje habitada por Liz e John Ingram, papéis de Viola Davis e Vincent D’Onofrio, Bullock trabalha a sutileza que pode existir num coração pleno de emoções represadas, e então fica claro que o mundo para sua antimocinha se tornara um lugar do qual não consegue se sentir parte, e que aquela propriedade perdida no meio da zona rural de Seattle, no noroeste dos Estados Unidos, consiste na dimensão paralela na qual torna à vida e a si mesma. Ruth vai até lá e gasta muito tempo a contemplar aquele quinhão de um paraíso que não é mais seu, até ser notada por Liz, que rofa ao marido para que descubra quem é a invasora.

Os jornais já não se referem ao lugar como “a casa do homicídio”, e ninguém ali faz a menor ideia de quem seja Ruth Slater. John percebe que a história daquela mulher visivelmente machucada pela vida se confunde com sua casa e a convida a entrar. É impossível fazer qualquer conjectura sobre o passado nada honroso de Ruth só por avaliar seu aspecto — por mais maltrapilha e desgrenhada que esteja —, mas John, advogado experiente, nota que a personagem de Bullock encerra um grande mistério. É justamente o tirocínio dele que os une, na medida em que o marido de Liz se compadece de Ruth e se propõe a ajudá-la. E é aí que “Imperdoável” decola.

O conflito entre Ruth e Liz, que a quer bem longe de sua casa e de sua família, é só a parte menor da intolerância de que a protagonista é forçada a se esquivar. Ruth está empenhada em mudar de vida — manifestava esse desejo ainda no cárcere, quando fez um curso profissionalizante de carpintaria, que lhe rende a colocação num projeto filantrópico. Não bastasse esse trabalho durante o dia, dá expediente destrinchando e embalando peixe num frigorífico, indicada por Cross, ao passo que tenta uma chance de rever a irmã, com a mediação de John. Mas a vida para ela é madrasta, e quanto mais se esforça para escapar do precipício, mais lhe falta o chão. Fingscheidt e os roteiristas Peter Craig, Hillary Seitz e Courtenay Miles deixam para revelar na hora precisa, nem cedo nem tarde demais, o motivo por que Ruth anseia tanto por esse reencontro, o marco zero da nova vida que persegue. As sequências com trechos do que Ruth passara, momento em que minudências do crime emergem afinal, vêm sob a forma de flashes instantâneos, insinuando novas hipóteses para o assassinato do xerife — tudo do modo mais elegante que um filme com essa carga dramática consegue, o que, por sinal, o leva a um desfecho de todo inesperado, ainda que feliz. Em “Imperdoável”, Nora Fingscheidt consegue a façanha de intercalar tramas independentes que se juntam em alguma esquina do infinito, todas ligadas por uma mulher em busca de redenção.


Filme: Imperdoável
Direção: Nora Fingscheidt
Ano: 2021
Gênero: Drama/Suspense
Nota: 9/10